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O escritor Chico Mattoso: “Não tive a menor preocupação em ser fiel à realidade. Queria ser fiel ao meu livro, e só” | Chico Parada/Divulgação
O escritor Chico Mattoso: “Não tive a menor preocupação em ser fiel à realidade. Queria ser fiel ao meu livro, e só”| Foto: Chico Parada/Divulgação

Opinião

Uma trama que se reinventa

Yuri Al’Hanati, repórter

Chico Mattoso disse que uma das razões para citar o filme Chinatown, de Roman Polanski, era pelo seu roteiro, que se reinventa a cada momento – o que, em certa medida, casaria com a história de Renato e Camila em Havana. Talvez seja essa a principal característica de Nunca Vai Embora: não há apenas uma trama, embora haja um único fluxo contínuo de acontecimentos. De um romance sobre relacionamentos, o livro passa por uma trama policial, um acerto de contas com a própria vida e, por fim, uma crônica sobre os desvios da mente. Tudo gira em torno do protagonista, razão pela qual o livro não se perde em si próprio. E essa pluralidade é, particularmente, impressionante em uma obra de 128 páginas.

É preciso ressaltar, porém, que, ainda que o autor tenha conhecido Cuba com o propósito de escrever o livro, Nunca Vai Embora não se nega uma aura romantizada de Havana. O clima misterioso, plácido e, ao mesmo tempo, fervilhante em seu fundo lembra muito romances também ambientados na cidade, como Nosso Homem em Havana, do escritor inglês Graham Greene (que conhecia bem o país). Ainda assim, é uma fantasia baseada numa realidade vivida pelo autor, o que agrega valor ao universo que Chico Mattoso criou em sua trama. GGG1/2

O escritor Chico Mattoso recebeu uma missão literária que muitos considerariam invejável: passar um mês em Havana, em Cuba, para depois escrever um livro que se ambientasse na cidade. Foi o que fez após julho de 2007, e o resultado é o romance Nunca Vai Embora, parte do projeto Amores Expressos da Companhia das Letras.

No livro, Renato Polidoro, um dentista que enfrenta o desdém paterno é convencido pela namorada, Camila, uma aspirante a documentarista, a ir à capital cubana com o intuito de fazer um documentário. Em Havana, porém, o trabalho e o deslumbramento de Camila colocam seu relacionamento com Renato em segundo plano, o que desencadeia uma crise entre o casal.

Em um blog criado especialmente para o projeto, onde narra suas impressões sobre a cidade, Mattoso conta que tentou dar um tempo no projeto após seu regresso para assimilar as ideias. "Não funcionou: ainda hoje, as lembranças da viagem formam um corpo estranho dentro da minha cabeça", escreveu em seu último post.

Em uma entrevista por e-mail concedida com exclusividade à Gazeta do Povo, Mattoso fala sobre suas referências prévias à cultura cubana, a influência que o cinema exerce em sua obra e a arte de criar uma história em Havana sem viés político.

Como é a sua relação com Havana? O quanto do que você absorveu lá foi transferido para o romance?

Eu nunca tinha ido a Havana. É claro que o lugar já fazia parte do meu imaginário. Cuba é um desses destinos inescapáveis, para o bem e para mal. A viagem foi importante também por isso, pra "zerar" esse olhar, criar uma visão mais pessoal sobre aquilo tudo. Tentei ver e registrar o máximo possível, conhecer gente, ouvir histórias. Mas, depois que comecei a escrever, deixei de me preocupar com isso. Não tive a menor preocupação em ser fiel à realidade. Queria ser fiel ao meu livro, e só.

Já conhecia alguma coisa da literatura cubana? Que outras inspirações você teve além de passar um período no país?

Conhecia o básico. Na preparação da viagem, li um pouco mais. Um livro que me impressionou muito nesse processo foi o Memórias do Subdesenvolvimento, do Edmundo Desnoes, que foi transformado num filme genial pelo Tomás Gutiérrez Alea. Outra boa surpresa foram os romances de espionagem pulp vendidos nas ruas de Havana. Eles seguem a cartilha dos clássicos do gênero, mas, nesse caso, os vilões são os norte-americanos.

O protagonista de Nunca Vai Embora briga com a namorada, que acreditava ser muito intelectualizada para ele. Houve uma certa vontade em alfinetar o pedantismo?

Não. Eu não construiria um personagem pra alfinetar o que quer que seja. É verdade que o personagem da Camila tem um quê arrogante e deslumbrado, mas não acho que se resuma a isso. A Camila do livro é filtrada pelo olhar do narrador, pelas oscilações e limitações desse ponto de vista.

O cinema, mais especificamente o filme Chinatown, é importante para o protagonista. Por que você quis colocá-lo no romance?

Gosto de cinema, adoro Chinatown, mas não foi esse o motivo que me levou a colocá-lo no romance. Eu queria que os protagonistas tivessem um filme "deles", que fosse importante pra relação dos dois. Achei que Chinatown era o tipo de filme que dois personagens tão diferentes quanto o Renato e a Camila podiam compartilhar. Também gosto do fato de Chinatown ser uma história que vai sendo reinventada continuamente, até o último minuto, o que me pareceu que dialogava com certas características do livro. Mas o principal motivo é o chapéu de feltro do Jake Gittes [personagem do filme interpretado por Jack Nicholson].

Nunca Vai Embora esbarra, mas só de leve, na política cubana. É possível fazer uma história em Cuba sem falar de política?

É possível, sim. É verdade que a política é um tema quase inevitável num país como Cuba – e fugir conscientemente disso é tão estúpido como obrigar-se a tocar no assunto – mas isso não significa que todas as histórias tenham que trilhar esse caminho. Mesmo em Nunca vai Embora a política funciona de forma acessória, como pano de fundo para a história principal, que no fim das contas se desenvolve num plano bem mais reduzido.

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