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| Foto: Antônio More/ Gazeta do Povo

Trabalho requer força e concentração

Entre as novas profissões que despontaram no país nos últimos anos, a de chef de cozinha é a única que envolve em sua dinâmica um grande esforço físico – afinal, cozinhar exige organização e meticulosidade, mas é também um trabalho braçal –, atividades essas que costumam ser mais desvalorizadas socialmente. O que pode, então, explicar essa dicotomia?

"Existe a falsa ideia de que é uma profissão que pode ser o caminho para o ‘sucesso’. A pessoa acha que, fazendo um curso na área, será bem-remunerada e reconhecida, que é o caminho para uma ascensão material", crê a professora do Curso de História da PUC Paraná e mestre em História da Alimentação pela UFPR, Daniele Saucedo. Ela, que também já lecionou para o curso de Gastronomia na própria PUC, diz que muitos de seus alunos conseguiram postos bastante humildes em cafés e restaurantes de Curitiba após a formação. "Acho complexo definir o porquê de o curso ter virado uma suposta garantia."

Já o professor titular da UFPR e coordenador do grupo de estudos e pesquisa em História e Cultura da Alimentação, Carlos Roberto Antunes dos Santos acredita que ficar às voltas com as panelas, o fogo e o frio pode até caracterizar o trabalho como braçal, mas que cozinhar está diretamente ligado com a criatividade. "É diferente de um pedreiro, cujo trabalho é braçal e mais limitado ao que ele tem de fazer. Na cozinha, a divulgação do trabalho e a qualidade acontecem por meio da criação."

Inserção

A valorização do chef e da gastronomia na sociedade se dá, ainda, pelo ato de comer estar associado com a socialização. Além disso, ser "entendido" na área (como conhecer vinhos diversos ou saber de cor o mapa dos melhores restaurantes) é um meio de se inserir socialmente. "Indo para o lado mais radical, muitas pessoas chegaram a fazer curso de enólogo para discutir vinho por horas, uma certa afetação. De qualquer forma, a comida é associada ao lazer. Desde a Roma Antiga, nos banquetes e festas, o alimento sempre foi o cerne", salienta Daniele.

A rotina é frenética: são, no mínimo, oito horas de trabalho em pé, enfrentando calor, frio e a pressão do tempo. Às vezes, passa a 12, 14 horas. O líder da equipe nem sempre é dos mais amigáveis e o salário também não é dos melhores. Mesmo com condições adversas, a profissão de chef de cozinha e a própria gastronomia ganhou um status elevado no Brasil, principalmente nos últimos 10 anos. O fascínio em torno da atividade tem algumas explicações, segundo os especialistas e profissionais da área entrevistados pelo G Ideias: a elevação da escolaridade de quem trabalha na área, a profusão de programas e livros de culinária e o reconhecimento internacional e status de celebridade de alguns chefs brasileiros, como o paulista Alex Atala, são alguns dos elementos que geraram interesse. Isso fez, ainda, a sociedade achar "chique" o ato de cozinhar.

O mercado, logicamente, contribuiu para o boom de cozinheiros: só em 2012, de acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o setor movimentou R$ 100 bilhões, e já emprega mais gente do que a construção civil. A inclusão do curso de gastronomia no hall de tecnológicos (superior) pelo Ministério da Educação há pouco mais de cinco anos, também ajudou no salto, diz o coordenador do curso de Gastronomia do Centro Tecnológico Positivo, Dario Paixão. "O MEC vislumbrou que o país precisaria dessa mão de obra, já que o setor de hospitalidade cresce no país por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas."

A melhora no nível da renda do brasileiro é outro fator apontado por Dario, pois a possibilidade de comprar e conhecer produtos de qualidade gerou maior competitividade e profissionalização dos restaurantes. "A qualidade do cliente tem melhorado muito, ele tem acesso a diversos programas de tevê, e cozinha mais em casa, o que eleva seu nível de exigência. E isso é extremamente positivo para o mercado", acredita Celso Freire, chef do Zea Maïs. No mercado há 25 anos, Freire, que foi sócio dos restaurantes Boulevard e Guega, diz que a valorização da profissão de chef no Brasil é tardia. "É uma bela profissão que no mundo todo já é reconhecida. Para cá ela veio no modismo, mas, pelo menos, na hora certa. Cabe a nós fazer com que não seja algo passageiro, e que as pessoas encarem a gastronomia, e não só a cozinha."

Para o diretor-acadêmico do Centro Europeu, Rogério Gobbi, a área não é somente uma moda, e o entendimento do leigo gerou novas demandas. "Se você sabe como é feita uma paella, se tornará mais exigente no restaurante. Outro dia, fui a uma pizzaria e o garçom chamou o sommelier da casa para ajudar na harmonização do vinho. Isso era uma situação impensável em Curitiba há alguns anos." Para a professora do curso de Economia da Fae Centro Universitário, Cristina Ferigotti, o brasileiro, que passou a comer mais fora de casa, também sofisticou os seus hábitos, alavancando esse consumo requintado. "O consumidor vai procurar outras ofertas mais sofisticadas. A questão chave é que agora, como se aponta para uma retração da renda e do crescimento, se avaliará se as pessoas estão mesmo dispostas a continuar gastando com isso."

O professor titular da Universidade Federal do Paraná e coordenador do grupo de estudos e pesquisa em História e Cultura da Alimentação, Carlos Roberto Antunes dos Santos, acredita que a supervalorização da gastronomia ocorreu porque ela "saiu da cozinha." "Hoje não basta cozinhar bem, a cozinha é um espaço de criatividade. E essa é a minha grande bronca com alguns chefs, que só sabem cozinhar, mas não têm noção da dimensão que alcança a comida. O que se come é tão importante quanto e com quem se come", salienta. Os estudos na área de história de alimentação, aliás, também são recentes: o grupo da UFPR, que surgiu em 1992, é pioneiro no país e, desde então, foram defendidas 15 teses de doutorado, 17 dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de curso.

Trajetória

Do ponto de vista histórico, cozinhar sempre foi valorizado apenas no âmbito familiar e privado. "Até o século 18, o cozinheiro, mesmo se fosse da corte, era valorizado apenas internamente", diz a professora do Curso de História da PUC Paraná e mestre em História da Alimentação pela UFPR, Daniele Saucedo.

De acordo com a professora, o chef começa a tomar forma no final daquele século com o surgimento dos restaurantes na França que, a princípio, serviam apenas caldos para que a boemia francesa se recuperasse da noitada. "O restaurante como conhecemos hoje já é o do século 19, principalmente com o chef Marc Antoine Carême considerado o chef dos reis e reis dos chefs, que cozinhou para famílias ricas, como a dos Rothschild, criou a alta gastronomia e simplificou gostos, tirando o excesso de especiarias que prejudicavam o sabor do alimento." Já na virada do século 19 para o 20, nomes como Georges Auguste Escoffie e o hoteleiro César Ritz, se tornaram expoentes da boa mesa na Europa, e contribuíram para a valorização da atividade no continente.

Reflexo

Antunes acredita que a gastronomia é tão importante hoje na vida das pessoas que virou um microcosmo da sociedade, muitas vezes antecipando fatos. "Quando George W. Bush definiu Saddam Hussein como inimigo, se sabia que o Iraque seria invadido, só não se sabia quando. Se os espiões iraquianos prestassem atenção na gastronomia, iriam saber. A Casa Branca pede cerca de 50 pizzas por dia e o Pentágono, 200. Teve um momento, no dia da invasão, que esse número subiu para 500 e 12 mil, respectivamente, sinalizando que as pessoas permaneceriam mais tempo nos locais."

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