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Adaptação de O Leitor para o cinema deu a Kate Winslet o Oscar de melhor atriz | Divulgação
Adaptação de O Leitor para o cinema deu a Kate Winslet o Oscar de melhor atriz| Foto: Divulgação
  • Bernhard Schlink: memória

O Leitor, de Bernhard Schlink, trata da relação de Michael Berg, de 15 anos, e Hanna Schmitz, 36. A relação durou cerca de um ano, mas um novo encontro acontece anos depois: ele como estudante assistindo a um julgamento, ela como ré por ter feito parte ativa da SS nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial.

A narração é em primeira pessoa, feita pelo próprio Michael Berg já mais velho – a história acompanha as suas lembranças. Toda a informação vem da sua memória e do fato de que, ele nos explica ao final, era preciso escrever para não perder, não esquecer. O que se tem, portanto, da personagem Hanna Schmitz é o que ele, o narrador, nos dá dela, a sua percepção do que ela parecia ser e de como ela se relacionava com o mundo.

Já no julgamento, por exemplo, fica claro o quanto ideias pré-concebidas determinam o veredicto. E não me refiro aqui a ideias sobre o certo e o errado, o bem e o mal de que a Justiça obviamente deve tratar, mas ao certo e errado do comportamento mais pessoal, de como as pessoas acham que todos devem ou não reagir quando defrontados com certos fatos da vida. "Como se deve sentir" um acontecimento é algo aparentemente tão entranhado na nossa sociedade quanto os "valores" propriamente ditos. Não é permitido, em nome da boa convivência, "sentir" pouco ou "sentir" diferente. Imagine-se então "não sentir".

Um livro muito importante do século 20 já tinha tratado do assunto. O Estrangeiro, de Albert Camus (1913-1960), apresenta um homem que conta parte da sua vida. Meursault é um argelino (como Camus) com uma vida comum e sem ambições. O livro começa com a morte da sua mãe num asilo um pouco distante de onde ele morava, e para onde ele vai para o enterro.

Meses mais tarde, em circunstâncias banais e inesperadas, Mersault mata um homem e vai a julgamento. E é nesse julgamento que o livro acontece de fato. Tudo o que até ali tinha sido uma narrativa insossa e quase inócua culmina no ritual oficial de um julgamento em que coisas como o fato de não ter chorado no enterro de sua mãe vão incriminá-lo.

Ele nunca negou o crime, mas seu advogado afirma que o caso não seria difícil, ao menos não para chegar à pena capital. Finalmente, é porque ele parece não se defender, não se desesperar e não se mostrar arrependido diante do júri, porque não chorou pela mãe, iniciou um namoro ainda em luto e porque "parecia" indiferente a tudo, que ele é realmente condenado. E ele afirma o tempo todo, para o leitor, não reagir por não saber como.

Hanna Schmitz foi julgada, junto a outras carcereiras, por sua atividade na guerra como carcereira em Auschwitz e por ser responsável pela morte de centenas de prisioneiras. O narrador, estudante de Direito, mostra como o processo, montado como estava, era na verdade favorável às acusadas, mas vai deixando claros os meandros do julgamento que fazem com que Hanna, embora não fosse a única responsável, acabe sendo escolhida e incriminada, com pena maior que as das outras carcereiras. O problema foi o comportamento de Hanna no tribunal. O fato de não ter originalmente respondido a cartas daquela corte. Ter finalmente assinado um "aceite" a uma série de condenações ainda durante o processo. Ter respondido pronta e afirmativamente às perguntas todas, expondo suas colegas que acabaram por se voltar contra ela. Hanna, querendo esconder o que considerava uma vergonha ainda maior, age como se fosse esse o comportamento esperado dela. A ponto de perguntar para o juiz, duas vezes: "O que o senhor teria feito?".

É claro que é uma pergunta fácil para qualquer um, partindo-se do princípio de que o envolvimento inicial com a barbárie nazista é a primeira responsabilidade incriminável. Mas o narrador lembra o tempo todo – e essa era, naquele momento, anos 1960, uma grande discussão na Alemanha – que quase todos os alemães se envolveram com o nazismo. Deveriam ser julgados, todos?

Ao contrário de Camus, Bernhard Schlink escolhe discutir também as questões morais envolvidas. Mas, nos julgamentos encenados em ambas as obras, o teatro da justiça cede à premência das impressões, ao que é patente num nível muito mais superficial, mas talvez mais importante para a maioria: as aparências que a sociedade tenta manter.

Entendemos que existam assassinatos e fazemos leis sobre isso. Mas não entendemos que alguém não possa sentir como a maioria, não expresse dor ou arrependimento quando é só isso que se espera. E nem precisamos fazer lei para isso: esses são atos mais torpes que outros. Mas e se não fomos alfabetizados na mesma escola em que esses sentimentos e expressões são ensinados? E se somos ligeiramente diferentes ou achamos, como Meursault, inútil demonstrar sentimentos que podem ser mal-expressados e malcompreendidos? Não expressar significa que não sentimos? Em que cada um de nós esconde o seu analfabetismo?

Serviço

O Leitor, de Bernhard Schlink. Record, 240 págs., R$ 29.

Sandra M. Stroparo é professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná.

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