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Novela

Nem Te Conto, João

Dalton Trevisan. Record, 190 págs., R$ 30.

Antologia

Até Você, Capitu?

Dalton Trevisan. L&PM, 112 págs., R$ 16,90.

Na orelha que preparou para o livro Abismo de Rosas, lançado por Dalton Trevisan em 1976, seu amigo Otto Lara Resende passou adiante a dúvida que certo crítico holandês registrou, perplexo, logo após ler alguns contos daquele obscuro autor brasileiro: "Quem, meu Deus do céu, é esse Dalton Trevisan?".

Até hoje está difícil responder. Otto, não pretendendo ser original, dizia que Dalton era a sua obra e nada mais, e que o homem por trás dela não interessava, nem deveria ser incomodado em seu trabalho silencioso. Perfeito. Mas, na empolgação do merecido elogio, ou na compreensível tentação de classificar o colega, Otto também buscou decifrá-lo. Comparou Dalton Trevisan a um prisioneiro em seu próprio campo de concentração. E o chamou de urso, lobo feroz, nó cego, vampiro universal, severo anacoreta. E monstro moral.

O primeiro conto daquele Abismo de Rosas levava o mesmo título do livro e, um quarto de século depois, viria a se tornar o capítulo de abertura de Nem Te conto, João, novela de 2011 que a editora Record acaba de relançar. A trama desta última é simples, fragmentada e claustrofóbica: Maria, uma moça pobre e virgem, vem a Curitiba em busca de trabalho, estudo e futuro. Habitua-se a visitar um velho advogado em seu escritório, o casadíssimo doutor João, a quem pede ajuda e dinheiro em troca de pequenos favores sexuais — sempre se negando, é justo ressaltar, a abrir mão de sua suposta virgindade.

Mil e uma tardes

Sherazade suburbana, a singela e manhosa Maria posterga a hora da penetração narrando ao ansioso doutorzinho — cidadão benemérito, outra das grandes e falidas figuras de poder de Dalton — uma série de histórias banais e picantes sobre seus familiares, namorados e pretendentes. São mil e uma tardes de fuxico e sacanagem. E assim, na base da conversa e do agarramento, a donzela vai pagando o dentista, a pensão, o cursinho, o salão, a faculdade.

Tudo em Nem Te Conto, João é comércio, escambo, negócio — uma carícia a mais já vale uma bala azedinha. Mas ninguém, no universo de Dalton, joga aberto; seus personagens, por mais que lutem e ataquem, não descuidam da retaguarda. No aniversário de Maria, por exemplo, ela aparece no escritório de João e, decidida a esfriar o entusiasmo do advogado, primeiro o acusa para depois se defender: "Você é mesquinho, João. (...) Tudo você quer retribuição, não é? Eu vim receber meu presente de anos. Não vim me vender".

Isso, é claro, já lemos antes. O reaproveitamento de textos, personagens e situações nunca foi novidade no repertório de Dalton Trevisan. Ele mesmo já escreveu: "Todas as histórias — a mesma história e uma nova história". Sim, sempre há novidade em seus livros, e ela nunca deixará de se revelar a seus leitores e "releitores" mais atentos. Há por aí outra máxima esclarecedora forjada pelo autor: "Uma história nunca termina, a cada leitura ela se reescreve". Assim, é lendo e relendo o contista, hoje, que o redescobrimos cada vez mais certeiro, técnico, mortal, engraçado e — aí é que está a surpresa — terno.

Monstro de ternura

A gênese de Nem Te Conto, João aparenta ter sido longa. São vários contos escritos décadas atrás, espalhados por cinco livros, e republicados em ordem inédita. Para se ter uma ideia, o segundo capítulo da novela só veio à luz quatro anos depois do primeiro, na coletânea Lincha Tarado, de 1980. Chamava-se, então, "A Mecha Prateada". E a ele, em Nem Te Conto, João, seguem-se textos recolhidos de outros três volumes de Dalton: Chorinho Brejeiro (1981), Essas Malditas Mulheres (1982) e Meu Querido Assassino (1983).

Já no segundo capítulo da novela — o antigo conto "A Mecha Prateada" —, encontramos um trecho que, se não for uma coincidência das mais luminosas, tem tudo para ser uma brincadeira cifrada entre Dalton e Otto. Quando Maria conta a João sobre os últimos ataques de ciúme de seu noivo, o enérgico sargento André, o advogado não o perdoa, tachando-o ironicamente de "monstro moral".

Dalton parece colocar a si mesmo dentro do texto, diverte-se enquanto escreve. Em outro momento, Maria se queixa com João da vida dura que leva na capital paranaense: "Tua Curitiba não aguento mais". E João, mostrando que, como nós, também é leitor de Dalton, pergunta: "Nunca leu as famosas lamentações de um tal...". Ela o corta: "Já ouvi falar". Cruel, o velho não desiste do papo de literatura, e sente um prazer quase infantil ao definir sua cidade para a "amiga". Curitiba seria "uma cadela engatada que espuma, uiva, morde, arrastando o macho". Maria, como é do feitio de todas as Marias de Dalton, responde com sonsa repugnância: "Credo, João".

E onde está a ternura, afinal?

Na maneira piedosa como João se ajoelha diante do "abismo de rosas" de sua virgem. No susto de Maria ao perceber que o advogado nunca perdeu um detalhe sequer das histórias que lhe conta: "Credo, João, você decorou a minha vida". Na comovente constatação da mocinha ao finalmente desabafar com o velho sátiro, seu confidente: "Que bom, João, se você fosse meu pai". Por mais que os personagens de Dalton sejam egoístas e mentirosos, eles também são profundamente honestos no modo como reagem à solidão.

Perneta

Voltando ao Otto, ele dizia que Dalton Trevisan vivia "concentrado em si mesmo, neste voto de solidão e renúncia que todo grande escritor tem de fazer e cumprir". Bem, para quem não acredita na ternura do vampiro, nem no carinho que ele talvez cultive por suas criaturas, não custa lembrar que Dalton já nos deu uma ótima pista sobre seus inusitados poderes empáticos: "Dou com um perneta na rua e, ai de mim, pronto começo a manquitolar".

Enfim, o tal crítico holandês queria saber quem é Dalton Trevisan. E o próprio Dalton, a cada conto que escreve e reescreve, publica e republica, nos sugere uma resposta. É com uma dessas sugestões, inclusive, que ele encerrou a breve antologia Até Você, Capitu?, recém-lançada pela L&PM: "Me fiz tudo para todos, para por todos os meios chegar a entender um só — ai de mim!". Quem é ele? Se Flaubert era Emma Bovary, Dalton é bem capaz de ser a Polaquinha.

Nenhuma novidade? Quem sabe? O melhor é continuar a ler e reler seus livros. Numa carta a Fernando Sabino, em 1969, Otto Lara Resende já se espantava: "Vou ler os contos do Dalton, eita rerrerreleitura!". Pois o homem não envelhece e nem se deixa capturar. Ele mesmo nos avisou: "Você é sempre novo diante de outra pessoa".

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