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Músico era conhecido pelo temperamento bem-humorado | Vanina Lucchesi / AFP
Músico era conhecido pelo temperamento bem-humorado| Foto: Vanina Lucchesi / AFP
  • O pianista em 1956, na capa de Jazz: Red, Hot and Cool
  • Brubeck estampando a capa da Time

Acabei de comprar um destes toca-discos hi-tech e simplérrimos que me permitiu voltar a ouvir os LPs acumulados nos últimos 60 anos. Não por acaso, estava à mão o álbum Jazz: Red, Hot and Cool. Lembro da emoção com que o ouvi, em 1956, em Curitiba mesmo, na casa de minha família no alto da Carlos de Carvalho. A beleza da música era tanta que amorteceu totalmente meu espírito crítico – que não era pouco, apesar dos tenros 18 anos. O disco, na verdade, era uma engenhosa peça de marketing da Columbia e dos cosméticos Helena Rubinstein, promovendo um batom: acompanhava cada kit um disquinho com quatro faixas do catálogo de jazz da gravadora. Na capa, numa foto do grande Richard Avedon, aparecia a exuberante manequim Suzy Parker, – paixão de todos nós – batom nos lábios, vestido igualmente rubro, cigarro na mão, debruçada sobre o piano de Brubeck e com os belos braços nus roçando o saxofone de Paul Desmond.

Brubeck não existiria sem Desmond e vice-versa. O sax-alto que queria soar como um dry Martini e, com seu tom saudavelmente anoréxico, foi um dos poucos a escapar da influência de Charlie Parker, assim descreveu o encontro que mudou sua vida: "Na tarde em que conheci Dave Brubeck, no começo de 1944, eu estava numa banda do Exército em San Francisco e ele a caminho da Europa como fuzileiro. Acabou formando sua própria banda, fazendo uma turnê pela Alemanha com o grupo de dança The Rockettes e, no fim, dormindo na cama do general nazista Herman Goering (que, é bom esclarecer, não estava presente na ocasião). Depois da guerra, Dave e eu nos encontrávamos ocasionalmente em algum pequeno grupo. Éramos radicais demais para manter um emprego fixo. Eu ainda guinchava a palheta a maior parte do tempo nos agudos do sax-alto e Dave parecia tocar Bartok com a mão direita e Milhaud com a mão esquerda. Juntos, éramos capazes de esvaziar qualquer clube noturno em poucos minutos sem que ninguém tivesse gritado ‘INCÊNDIO!’"

Só tempos depois tive acesso a um álbum anterior de Brubeck e apaixonei-me por ele, The Dave Brubeck Octet, uma formação jazzística de câmara de San Francisco que, entre 1946 e 1949, antecipou as sessões de Birth of the Cool de Miles Davis e a fusão do jazz com a fuga bachiana do Modern Jazz Quartet. Miles Davis, ao levar adiante suas inovações orquestrais com o arranjador Gil Evans, incluiu no primeiro álbum da série The Duke, o belo tema de Brubeck dedicado a Duke Ellington. (Em 1954, Dave tornou-se o segundo músico de jazz a figurar na capa da revista Time, esse barômetro da alma americana — depois de Louis Armstrong em 1949. Julgou-se favorecido pelo fato de ser branco e lamentou que Ellington ainda não tivesse saído na capa da Time. A revista reparou a injustiça e publicou uma reportagem de capa sobre o Duke em 1956; honrou ainda o polêmico e rebelde Thelonious Monk numa capa em 1964 e brindou os novos tempos com Wynton Marsalis em 1990.)

Origens

Filho de um fazendeiro na Califórnia rural, David Warren Brubeck escapou de se formar veterinário para ajudar o pai com seu rebanho bovino, graças à influência da mãe, que estudou piano na Inglaterra e dava aulas de música. Com um dom natural para o piano, Brubeck, prejudicado pela miopia, fingia ler a partitura, e quase foi expulso da faculdade quando descobriram que não conseguia ler música. Foi então estudar contraponto e arranjo com o compositor francês Darius Milhaud e começou a extrair do idioma clássico os fundamentos com que criaria uma nova linguagem no jazz — a música maldita de negros renegados que encontrava, de repente, nos anos 1950, largas avenidas de expansão.

Compositor prolífico, Brubeck explorou métricas exóticas, fundiu o jazz com tradições remotas como as do Japão, do Oriente Médio e das polirritmias africanas. Mas soube compor também baladas simples, como a belíssima "In Your Own Sweet Way", venerada por gigantes do jazz como Miles Davis, Chet Baker, Bill Evans e imortalizada numa das mais líricas gravações do guitarrista Wes Montgomery. Essa simplicidade – e seu poder de síntese – não passaram despercebidos por Clint Eastwood, o cineasta que mais declarações de amor ao jazz já colocou na tela. No documentário que fez sobre Brubeck em 2010, Clint não hesitou em adotar o título On His Own Sweet Way, celebrando o jeito suave com que Brubeck fazia música e vivia. Numa saída típica do seu temperamento bem humorado, Brubeck morreu um dia antes de completar 92 anos, de insuficiência cardíaca... a caminho de uma consulta com o cardiologista.

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