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No filme "Os Sonhadores", Bernardo Bertolucci mostra um jovem americano enredado pelos jogos sexuais de um casal de irmãos franceses. Como sugere o título original, eles são, de certa forma, "inocentes". Jogam sem conhecer as regras e ignoram limites. A paisagem é da Paris de 1968, ano em que o mundo descobriu a possibilidade de lutar por causas consideradas importantes, seja a paz mundial ou o fim do preconceito racial.

O palco de "Desengano" (Agir, 208 págs., R$ 29,90) não é a França, mas o Brasil dos anos 40 aos 60, ou do ufanismo ao ceticismo. Na história, os jogadores são Beto (o vizinho), Júlia (a mãe), Ana e Neno (os irmãos). Beto convive com Ana e Neno desde sempre. Sua mãe e Júlia (prestes a enviuvar) são amigas próximas e ele, aos 17 anos – quatro mais velho que Neno e seis mais que Ana –, assumiu o papel de irmão, amigo e confidente das crianças. Na tarde de um dia comum, com Ana e Neno na escola, Beto estava no quarto deles, à toa, esperando a hora em que voltariam para casa. Júlia entra no quarto procurando alguma coisa sem saber da presença Beto. Ela havia acabado de sair do banho e estava enrolada na toalha. Encontrou um jovem perplexo e, sem pensar, o abraçou e o beijou.

Começa assim a relação de Beto e Júlia – ela com o dobro da idade dele – e o jogo sexual no qual o rapaz se descobre ao assumir aquela família como sua. A cena pode lembrar "A Primeira Noite de um Homem", filme de Mike Nichols sobre como a fogosa senhora Robinson (Anne Bancroft) seduziu o ingênuo Benjamin (Dustin Hoffman). Com essa, são duas as referências de cinema para se falar de um livro. As comparações se explicam porque o estilo de Carlos Nascimento Silva é cinematográfico. Os capítulos são curtos e a prosa, urgente. As ações e cenas que descreve, bem como o ritmo que imprime à história, se desenrola como um filme na cabeça do leitor.

Os nomes mais recorrentes em textos que tratam de "Desengano" são os de Nelson Rodrigues e de Pier Paolo Pasolini – talvez por serem evocados na orelha da obra em uma tentativa de rotulá-la. Um e outro autor trataram da dissolução da família, cada qual a sua maneira. Embora aborde o incesto – ainda que de maneira muito breve –, a família que se dissolve no romance de Nascimento Silva não é nenhuma aberração. A diferença de idade entre Beto e Júlia, de 17 anos, poderia chocar o Brasil dos anos 40. Hoje, seria coadjuvante em uma sociedade habituada aos anos (23) que separam Marília Gabriela de Reynaldo Gianecchini, ou Vera Fischer de qualquer um de seus namorados.

Outro tema que se pretende polêmico na história, o sadomasoquismo, também é retratado de maneira bastante sutil. No mundo que assimilou Michel Houellebecq ("Plataforma") e Philip Roth ("O Complexo de Portnoy"), ambos escritores cujas obras rendem citações para Nascimento Silva, umas palmadas não chocam ninguém. Sobra a endogamia. Beto pode não ser o irmão de sangue, mas é como se fosse. Nas 200 páginas do romance não aparece sequer uma cunhada sedutora, mas fica claro, logo no início, que a atmosfera instalada é típica de Nelson Rodrigues. O que explica a resignação com que o leitor descobre (ou espera) que Beto se envolva não apenas com a mãe, mas também com a filha. Ou, em tempos de faroestes homossexuais, com o filho (o que nunca acontece).

Livre da polêmica sugerida pela comparação com Pasolini e Rodrigues – ambos notórios contraventores –, "Desengano" se revela um ensaio sobre a insatisfação. Da viúva solitária que se envolve com o jovem vizinho. Do jovem com a esposa ausente. Da garota deixada de lado. Do irmão ignorado. Não importa a situação ou a pessoa, o ser humano está destinado ao descontentamento. Outra qualidade do romance é a forma como amarra fatos ficcionais a históricos. E por "fato" se entenda coisas simples, como um sabonete Lever ou a presença notável do rádio no cotidiano da época, e outras complexas, como o suicídio de Getúlio Vargas.

Na história, um tanto melodramática, os pontos de vista se alternam entre Beto, Júlia e Ana. Um dos melhores momentos é quando Beto deixa a casa de Júlia, pouco depois de ser beijado por ela, e experimenta uma turbulenta sucessão de sentimentos que só terminam quando a reencontra, temendo não ser levado a sério. Nascimento Silva consegue retratar a transição de um jovem rumo à maturidade (sexual, ao menos) com síntese notável.

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