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Hoje, das 14 às 17 horas, o artista plástico Newton Goto, 42 anos, vai lançar na Praça 29 de Março (ruas Brigadeiro Franco com Martin Afonso) o livro Coisa Pública. A obra – um panorama da trajetória de Goto, como é conhecido –, foi feita com recursos do Fundo Municipal de Cultura e do projeto Expansão Pública do Artista, o EPA!. Ops...

EPA!, sigla do órgão de autogestão criativa criada por Newton Goto, é o bastante para dizer que não se trata de uma sessão de autógrafos convencional, nem esse texto é um release. O livro é grátis e será lançado "ao vento". Os convidados devem levar lanche para um piquenique. Se chover, quem for deve procurar o artista nalguma marquise próxima. Em tempo – qualquer um que conheça o autor não estranha. Há 15 anos Goto é um criador em público e Coisa Pública não poderia vir à baila num evento em gravatas.

É difícil precisar o momento exato em que Newton Goto, digamos, perdeu a virgindade e se viu atirado às ruas, seu habitat. "Estava guardado que ia ser assim", brinca ele, ao passar um café no coador de pano na casa velha com quintal onde vive, no Bom Retiro, ao lado da mulher, a arquiteta Faetusa Tezelli, e do recém-nascido Otto, do qual cuida à moda dos maridos nórdicos. É um faz-tudo e avisa que está se saindo bem na lide das fraldas.

Sua "primeira vez" talvez tenha sido em 1994. Recém-formado em Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, a Embap, começou a fazer oficinas de serigrafia com o povo do litoral. Achou mais graça nesse ofício do que nos rituais do circuito de arte, para o qual surgiu como uma promessa. Sim, Newton Goto provou da fruta desejada pela maioria dos artistas. Havia curadores de olho nele. Fala desse mundo com facilidade, alguma acidez, nenhuma amargura. Mas eis que...

Dois eventos foram decisivos para que Goto se tornasse sinônimo de arte pública, arte urbana, arte etnográfica, arte cartográfica ou que nome tenha aqui e ali. Aconteceu no final dos anos 1990. Primeiro foi uma exposição em que ironizava os salões de arte. As fichas de inscrição, os descritivos, a avaliação por slides, a mesa da comissão julgadora, tudo virou objeto de uma instalação que botou um risinho amarelo no establishment.

Na sequência veio um entrevero com a Galeria Ybakatu, com a qual trabalhava. Em 1999, a ocupação do Movimento Sem-Terra na frente do Palácio Iguaçu levou o artista a remodelar um trabalho, usando o símbolo do MST como ready made, objet trouvé e, acima de tudo, motivo de uma senhora encrenca com a galeria, que viu na mudança uma quebra de contrato. Faíscas trocadas, Goto virou as costas e foi expor no próprio acampamento (Ocupação, 1999), para o qual se mudou como um colono da Fazenda Annoni. Ali estendeu um varal para poesias e desenhos. Abalou a pasmaceira da cultura. "Foi difícil. Era diferente de tudo. Eu me sentia exposto demais", lembra.

Goto pode até levantar as pestanas quando perguntado se deveria agradecer à Ybakatu – afinal, a galeria acabou lhe fazendo um favor ao rejeitar a instalação. Foi a partir daquele dia que o circuito passou a vê-lo como uma reedição – erudita, jovial e de bike –, da raivosa arte de protesto das décadas de 1960 e 1970. É assunto, aliás, que ele domina, passando o rodo nas teorias que veem em Cildo Meirelles, Antônio Manuel, Arthur Barrio ou Carlos Zílio meros artistas de passeata, panfletários condenados às amarras da arte política.

Em resumo, depois do flerte com o MST – cujo selo está presente, não por menos, na capa do livro Coisa Pública – Goto fez trabalhos tão próximos das artes visuais quanto da antropologia e da sociologia. E não adianta discutir essas fronteiras com ele, pois "já fez a passagem". Circular fora do quadrado lhe é natural. Integrou-se à turma que faz arte urbana no bairro Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Estando por aqui, fez solos memoráveis, como as plotagens gigantes que colocou na espremida Travessa da Lapa (Intropop-overdozen, 2000), o que fez da rua mais estranha da cidade uma galeria para os passageiros do ônibus. Ficou pelado, em protesto, na Praça Nossa Senhora de Salete. Em Cidade Vazia (2011), mapeou os prédios abandonados do centro de Curitiba, experiência que fez dele um especialista inesperado nas artimanhas da especulação imobiliária. No projeto Desligare (2002-2006), filmou uma centena de pessoas desligando a televisão – que entende como o mais abstrato dos espaços públicos.

Nos últimos anos, em parceria com os artistas Cláudia Washington e Lúcio de Araújo – com os quais forma um coletivo – bolou exposições no túnel dos terminais, mapeou zonas de ocupação irregular que não figuravam nem nos registros da Cohab, desenvolveu o conceito de produção em artes visuais. Fez de metade de sua casa um arquivo de recortes e livros que encheria de orgulho a crítica de arte Adalice Araújo, morta ano passado, e uma das descobridoras de Goto. Sobretudo, Newton é um artista que fala com anônimos, aos quais acompanha às favelas e ladeia nos ônibus entupidos.

"Abri mão da reputação. Eu queria o conteúdo. Queria criar um incômodo. Me sentia muito passivo no circuito de artes plásticas. Desejava ser propositivo", conta, sem afetação. Estar na cidade, de fato, às pedaladas, virou seu estilo de vida. Não poderia cumprir esse destino sem estar em companhia de outras pessoas que não a turma do meio. Pagou um preço.

Na rua, diz Goto, "tudo é coletivo, escapa ao controle, aparece e desaparece". É preciso ter outros conhecimentos – a exemplo da própria geografia urbana – e entender que o tal do efêmero, tão discutido nos circuito ilustrados, chega a ser cruel. Daí suas preocupações com a memória, com os mapas de ruas perdidas e – pasme quem apostou o contrário – sua profissão de fé no poder da arte, da qual, há quem aposte, afastou-se. "Todo mundo pode entender essa linguagem. É o que nos une no meio de tantas situações complexas".

Uma das inspirações do "artista que perambula" é o nonagenário franco-marroquino Alain Badiou. O filósofo rejeita a crítica pela crítica, discurso pelo discurso. Prefere tratar da reverberação das atitudes, da ação propositiva no tempo e no espaço, da captura dos pequenos contextos, nos quais a diversidade está se dando a conhecer. Nem é preciso dizer que as manifestações dos últimos dias ocupam os pensamentos de Goto, o leitor de Badiou. "Estamos diante de uma deflagração de realidades", diz, lembrando outro guru – Hélio Oiticica. "Uma afirmação da vida... A gente, como artista, pode dizer que a realidade se tornou caleidoscópica, mas...", conversa, logo avisando que não é essa sua praia. A vida, para Newton Goto, é perto.

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