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Até bem pouco tempo, o descaso predominava na preservação da memória do cinema brasileiro. O acesso aos principais filmes produzidos até hoje no país sempre foi complicado. Não raro, cópias em película em bom estado dos desses títulos eram encontradas apenas em cinematecas estrangeiras. Alguns deles ganharam edição em vídeo no início da década de 80, quando o VHS chegou ao Brasil, mas a maioria já estava há um bom tempo fora de catálogo, sendo encontrados apenas em videolocadoras especializadas em cinema de arte, muitas vezes em cópias mal conservadas. A chegada do DVD não mudou essa história de cara, mas ela começa a ser transformada com algumas recuperações recentes de clássicos do cinema nacional, que estão sendo restaurados e lançados no formato digital, e também ganhando novas cópias para cinema.

Os primeiros clássicos a serem recuperados para o público foram Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, longas-metragens de Glauber Rocha – a cinematografia de um dos maiores cineastas brasileiros deve ser completada em breve pelo DVD. Outro diretor que terá toda a sua obra lançadano formato digital é Joaquim Pedro de Andrade, começando com o importante Macunaíma (1969), que recebeu nova cópia remasterizada em película, apresentada em alguns festivais de cinema deste ano. O filme foi colocado para venda este mês no mercado de DVDs pela VideoFilmes, que também disponibiliza neste fim de ano outra fita seminal do cinema brasileiro: São Paulo S/A (1965), de Luiz Sérgio Person.

Não tão conhecido do público leigo de cinema, Person pode ser apresentado aos mais jovens como o pai da VJ Marina Person (da MTV) e da apresentadora Domingas Person (do Multishow). Morto jovem, em um acidente de carro em 1976, pouco antes de completar 40 anos, o cineasta paulista tem uma cinematografia curta, mas que destaca outros ótimos títulos como o quase documental O Caso dos Irmãos Naves (1967) – que também merece uma edição em DVD – e a comédia Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972).

Moderno e urbano

Em 1965, o Cinema Novo já estava estabelecido como gênero especial a partir das obras de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, entre outros. O olhar predominante dessa geração de cineastas era voltado para o Nordeste e para os mais desfavorecidos, criando alegorias e metáforas relacionadas à situação daquele momento no Brasil. Com São Paulo S/A, Luiz Sérgio Person, foi na contramão dessa proposta, apresentando um filme urbano e existencialista, que antecipava os problemas e o caos que a futura maior cidade da América Latina enfrentaria nas décadas seguintes.

"Uma das primeiras coisas que marcavam o Person era a sua oposição ao Cinema Novo. Ele achava que Glauber e os outros estavam cheios de ilusões, comportando-se como meninos que não percebiam a realidade política e não viam que não haveria revolução. Ele disse que não teve nenhuma surpresa quando o golpe chegou", revela Jean-Claude Bernadet – um dos maiores pensadores do cinema brasileiro e roteirista de O Caso dos Irmãos Naves –, em depoimento ao documentário Person, que Marina Person realizou em 2003 (já veiculado na TV Cultura).

São Paulo S/A retrata o período de pré-industrialização da capital paulista, entre 1957 e 1961. O personagem principal é Carlos (Walmor Chagas), envolvido com três mulheres: a burguesa e acomodada Luciana (Eva Wilma), com quem se casa; a ex-namorada e alienada Ana (Darlene Glória); e a intelectual e romântica Hilda (Ana Esmeralda), que o intimida e com quem tem um breve caso. Carlos trabalha com o esperto Arturo (Otello Zeloni), de quem acaba ficando sócio em uma próspera empresa de peças de automóveis.

Escorado pelo ótimo trabalho de fotografia em preto e branco de Ricardo Aronovich, Person imprime uma narrativa não-linear na história, destacando as diversas divagações e questionamentos de Carlos quanto aos seus relacionamentos, mostrando também seu inconformismo com o mundo contra o qual pretende se rebelar. A sensacional seqüência de abertura – com Carlos caminhando atordoado pelas ruas de São Paulo e dialogando com Luciana, que acaba de abandonar no seu apartamento – confirma que se está diante de um cineasta e de um filme diferenciados para a época. Person estudou cinema na Itália, recebendo influências do Neorealismo italiano e também da Novelle Vague francesa, que podem ser percebidas em São Paulo S/A.

O DVD não tem muitas extras. O destaque fica por conta de curtos depoimentos de Walmor Chagas e Eva Wilma, retirados do documentário de Marina Person (este sim poderia ser um ótimo extra), e de uma coleção de comerciais dirigidos por Person – o diretor foi publicitário por um tempo, também se dedicando ao teatro alguns anos antes de morrer.

Herói sem caráter

Uma das principais representações do brasileiro até hoje, Macunaíma, personagem criado por Mário de Andrade, chegou às telas de cinema em 1969, no filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade (1932 – 1988). Mas além de mostrar a imagem do ambivalente herói sem caráter – vivido magistralmente por Grande Otelo e Paulo José –, o cineasta também atualizou o clássico modernista para o momento político que o Brasil vivia na época das filmagens, acrescentando o personagem guerrilheira Ci (Dina Sfat) e falando de capitalismo e consumismo desenfreado.

Na trama do filme, Macunaíma nasce negro no interior – fato mostrado na famosa cena com Grande Otelo berrando como bebê ao ser parido pela mãe. Já transformado em homem branco (Paulo José), ele vai para a cidade grande ao lado dos irmãos. Lá, o preguiçoso "herói" vive um romance com Ci e encontra um grande oponente no gigante Venceslau Pietro Pietra, interpretado por Jardel Filho.

Legítimo representante do Cinema Novo, Macunaíma apresenta metáforas políticas e sociais, mas é também uma comédia que faz alusões às chanchadas. A fita diferencia-se de suas contemporâneas de gênero pelo uso excessivo de cores, o que, para muitos críticos e analistas, a liga ao Tropicalismo que nascia e germinava no período, apesar da negativa do diretor, constante no press-book original do filme e republicado no caderno especial que acompanha o DVD da VideoFilmes: "A impostação que pretendi dar a Macunaíma não se vincula à onda tropicalista que, para mim, sempre foi completamente furada como movimento".

A produção foi um dos grandes sucessos de público do Cinema Novo, confirmando uma aproximação com os espectadores desejada por Joaquim Pedro, que dizia pretender atrair os que estavam afastados do cinema por um caminho diferente, sem repetir velhas fórmulas. "Procurei fazer um filme sem estilo predeterminado. Seu estilo seria não ter estilo. Uma antiarte, no sentido tradicional da arte", confirma no mesmo press-book.

Os extras do DVD apresentam todo o processo de recuperação do filme (imagem e som), com destaque para o restauro da marcante fotografia de Guido Cosulich (complementada pelo hoje internacional Affonso Beato), repleta de cores e que ficou ainda mais exuberante. Vale lembrar também do emocionado depoimento de Paulo José, que revela, como se fosse uma poesia de Mário de Andrade, como foi participar do projeto de Macunaíma. O material do disco ainda inclui o média-metragem inédito Brasília, Contradições de uma Cidade Nova, realizado por Joaquim Pedro em 1967.

Que venham as novas restaurações dos demais filmes de Person e Joaquim Pedro de Andrade, assim como das obras de Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Carlos Reichenbach, entre tantos outros cineastas que ajudaram a construir a história do país com imagens. A memória do audiovisual do cinema brasileiro agradace.

São Paulo S/A (VideoFilmes, R$ 44,90, em média) – GGGGG

Macunaíma (VideoFilmes, R$ 44,90, em média) – GGGG

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