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O gigante Nelson Freire demonstra enorme vigor interpretativo em Harmonies du Soir | Reprodução
O gigante Nelson Freire demonstra enorme vigor interpretativo em Harmonies du Soir| Foto: Reprodução

"A música de celebração passa, com Liszt, a ser a celebração do músico." A afirmação de Françoise Escal, musicóloga francesa, sobre Ferencz Liszt, bem pode ser aplicada ao gigante Nelson Freire que, com enorme vigor interpretativo, oferece em seu novo CD, Harmonies du Soir, uma refinada homenagem ao bicentenário de nascimento do compositor teuto-húngaro, o mais diabólico músico do teclado de todos os tempos. Artista exclusivo do selo Decca, o músico brasileiro executa raro e refinado repertório, que caminha na contramão dos que, em esforço de marketing barato, embrenham-se somente em (re)lançar gravações das obras lisztianas mais conhecidas, até popularescas.

Gravado em Hamburgo, Alemanha, entre os dias 26 e 31 de janeiro, o oitavo CD de Freire pelo selo Decca excursiona por montanhas e vales insuspeitados, criando vertigem que oscila entre as alturas virtuosísticas do Estudo de Concerto Waldesrauschen e da Balada n.º 2 – verdadeiras explosões de técnica pianística –, e ambientes plácidos, quase meditativos, como o da célebre Consolation n.º 3, estabelecendo impressionantes gradientes dinâmicos, quase sobrenaturais.

Com 13 faixas – quatro peças breves, três de maior envergadura e o ciclo das seis Consolations – o álbum revela-se uma verdadeira comunhão entre autor e intérprete.

Abre o recital Waldesrauschen, o segundo dos estudos de concerto, datado de 1862. Uma cascata de semicolcheias, cristalinamente digitalizadas, alterna a melodia central entre as mãos direita e esquerda do pianista em direção ao clímax da obra (strepitoso). O exigente arcabouço virtuosístico da obra encontra em Freire o controle e fluidez próprios de quem possui as rédeas da cavalgada, de quem domina o cavalo de batalha. E domina porque conhece.

As duas obras seguintes, a barcarola Au Lac de Wallenstadt e o Soneto 104 do Petrarca, extraídos dos dois primeiros cadernos dos Années de Pélerinage – Suíça e Itália, respectivamente – revelam o doloroso conflito de um compositor que, mesmo sob fruto da paixão por Marie d’Agoult, enxerga nesta passional relação a verdade de uma união desprovida de amor estável, legítimo. Freire entrega-se à execução embebida de tamanho ardor que o piano põe-se em pé e se transforma em extensão dos dedos do intérprete.

Provocação é a palavra que define a leitura dada à Valse Oubliée. Uma inédita sensação, provocada também por certeiros rubatos. Tudo milimétrico, preciso, dançante. Freire belisca o piano nos staccatos iniciais e, em posição de ataque, consuma o tema scherzando non legato com incrível destreza. No mosaico lisztiano que o álbum oferece é, sem dúvida, uma escolha precisa, que amplia a visão daqueles que enxergam na Valse Mephisto a referência exclusiva do gênero dançante.

Quando o início da Balada n.º 2, datada de 1853, anuncia a espessa e negra nuvem que se aproxima, a energia da interpretação de Freire desafia a meteorologia e antecipa a presença da tormenta, tamanha a força do anúncio. A explosão sonora da obra em seu núcleo central não encontra, em nenhum momento, ecos de uma interpretação focada somente em volume, mas também em lirismo nostálgico que prenuncia o cantabile central. Muito possivelmente esteja aqui o clímax do álbum.

A simplicidade do ciclo Consolations (1849-1850), um conjunto de seis obras menores, encontra nas mãos de Freire a certeza de que beleza e simplicidade caminham de mãos dadas. A mais célebre, a terceira, cria certa sensação de imobilidade no instante. Diz o indizível. Nelson transmite o impossível.

A obra que dá título ao CD, Harmonies du Soir (em português, Harmonias do entardecer) é o décimo primeiro dos Estudos de Execução Transcendental, compostos entre 1826 e 1851 e dedicados a Czerny. Foram extensamente revisados pelo autor. A primeira versão (1826) recebeu um salto assustador no nível de virtuosismo em sua segunda versão (1837), a ponto de o próprio Liszt reconhecer o fato. Na terceira e última versão, hoje utilizada, encontramos em Harmonies du Soir experiências politonais que levaram até mesmo impressionistas a considerar esta obra como à frente de seu tempo. Baseada na noite, iniciando-se no crepúsculo, acordes quebrados e executados em rápida sucessão criam harmonias cromáticas intimistas, reflexivas que caminham com decisão à explosão de pura paixão, interpretadas com extrema elegância e rigor.

A dificuldade lisztiana absolutamente justifica algumas inexatidões de digitação contidas no álbum. Por ser gravado em estúdio, diferentemente das gravações ao vivo, um olhar mais antento à edição seria bem vindo. No entanto, o verdadeiro artista é o ser humano que nos conduz ao divino e, como afirmou André Frossard – por décadas editor-chefe do diário francês Le Figaro – sentimos também vontade de afirmar, após o contato com este álbum: "Deus existe, eu O encontrei".

O verdadeiro intérprete somente domina a obra quando por ela é dominado. E Liszt dominou Freire.

Serviço

Liszt – Harmonies du Soir. Nelson Freire. Decca/Universal Music. Preço médio: 29,90.

*Alvaro Siviero é pianista e estará realizando nas cidades de Nova York, Itália e Campos do Jordão (festival de inverno) recitais integralmente dedicados a Liszt. www.alvarosiviero.com

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