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Venus Negra, do franco-argelino Abdellatif Kechiche, é sobre o caso da sul-africana Saartje Baartman (Yahima Torres), mulher de grandes proporções físicas, portadora de uma genitália fora dos padrões de normalidade |
Venus Negra, do franco-argelino Abdellatif Kechiche, é sobre o caso da sul-africana Saartje Baartman (Yahima Torres), mulher de grandes proporções físicas, portadora de uma genitália fora dos padrões de normalidade| Foto:
  • Barney’s Version traz uma extraordinária atuação do ator norte-americano Paul Giamatti, à esquerda

Veneza - Chega ao fim a temporada de ca­­ça aos leões dourados. Para o bem ou para o mal, as estatuetas vão recompensar hoje à noite poucos títulos entre os 24 selecionados este ano para a competição principal da Mostra Internazionale d’Arte Cinematográfica de Veneza. As seções paralelas – Orizzonti, Giornate degli Autori e Settimana dalla Critica – também conferem prêmios, mas sem o prestígio do histórico símbolo secular da cidade.

Nunca é fácil prever vencedores em festivais de cinema. Aliás, a tarefa resulta estéril, embora divertida. Nessas ocasiões, a relativa democracia subjetiva que confere a alguns especialistas poder decisório é questionada como de hábito e inutilmente por todos. Realizadores e im­­prensa, passando pelo publico que aqui paga (caro) o ingresso, estabelecem sentenças simultâneas. Especula-se o que tal e tal jurado deverá decidir diante de tal ou tal filme. Projetam-se para o veredito as possíveis preferências dos juízes da hora.

Sabe-se que Quentin Tarantino tem, simbolicamente, uma san­­guínea relação com o universo de imagens do cinema de ação, especialmente as com passaporte asiático. É amante também confesso de certo cinema italiano, vertentes western e horror. Assim, alguns títulos chineses e japoneses a principio despontariam como teoricamente premiáveis. E o espanhol Solo Triste de Trompeta pegaria uma carona no agitado caleidoscópio do diretor de Kill Bill.

Mas e os outros seis jurados, rezaram pela cartilha do agitado presidente ou impuseram ritmo mais pausado nas deliberações, privilegiando trabalhos com maiores ambições reflexivas? Como sempre, vale o jargão "em cada cabeça etc, etc" para o mexicano Guillermo Arriaga, o francês Arnaud Desplechin, a lituana Ingeborga Dapkunaite e os italianos Luca Guadagnino e Gabriele Salvatores. Para conferir, as derradeiras cartadas da programação.

Libelo francês

Venus Negra, último representante da França em competição, trouxe de volta a Veneza o realizador franco-argelino Abdellatif Kechiche, que em 2007 saiu da­­qui aclamado com O Segredo do Grão, embora não tenha ganho o Leão de Ouro. Seu filme de agora, baseado em história real ocorrida no século 19, é sobre o caso da sul-africana Saartje Baartman, mulher de grandes proporções físicas, portadora de uma genitália fora dos padrões de normalidade.

Reduzida a atração de circo de variedades, ela é levada a extremos de racismo e humilhação, inclusive pela Real Academia de Medicina de Paris. O filme traz ressonâncias de O Homem Elefante, de David Lynch

O cinema de Kechiche, por meio de diálogos bem escritos, segura condução de atores e uma maneira muito peculiar de abrir o mundo real ao espectador, mesmo através da ficção, é sempre de uma honestidade e de um empenho exemplar. O problema é a longa, extensa duração de seus planos, que acabam desidratando o discurso.

O libelo antirracista e antissexista contido em Venus Negra perde força pela repetição, pela reiteração. Pela redundância, en­­fim. Mas, ainda assim, Kechiche tem fôlego para o Leão de Prata de melhor diretor e a estreante cubana Yahima Torres é nome forte para a Coppa Volpi de me­­lhor atriz.

Os últimos americanos

A delegação ianque completou sua participação felizmente não trocando seis por meia dúzia, já que apenas Sofia Coppola havia justificado, e ainda assim não totalmente, o numero elevado de títulos colocados na grade competitiva. Monte Hellman e Richard J. Lewis assinam trabalhos bem interessantes, embora apenas o primeiro tenha um perfil, digamos, mais cabeça.

Aos 78 anos, Hellman é o veterano da mostra. Isto é, quase, não estivesse também por aqui o centenário lusitano Manoel d Oliveira, que mostrou seu belo curta-metragem Painéis de São Vicente de Fora, Visão Poética.

Rigorosamente indie, Hellman é um desses marginais da grande indústria, e está de volta a seu acidentado front depois de 20 anos. Seu filme, Road to No­­where, é recheado da melhor cine­­filia: é um meta-argumento para embasar uma metalinguagem Na verdade, é um noir com recorte clássico, mas tem uma pegada forte de pós-modernidade.

De novo, o fantasma de Lynch passeou pe­­los sets. Sabe-se que este é um tipo de cinema que agrada a Ta­­rantino, e o júri europeu também não deve ficar indiferente. Portanto...

Com bem menos chances, em­­bora embalado por natural simpatia, Barney’s Version, de Richard J. Lewis, é quase cinemão. E é justamente o charme deste "quase" que lhe dá uma sobrevida acima da média co­­mercial. Baseado em best seller mundial do judeu-canadense Mordechai Richler, o filme acompanha a vida atribulada do Barney do título, produtor televisivo de sucesso, três mulheres, dois filhos. Um personagem rico em obviedades, sutilezas, atribulações, suspenso entre passado e presente.

O mundo segundo Barney. Um filme a que se assiste com enorme prazer por sua meia alternatividade. E pela extraordinária performance de Paul Giamatti. O diretor Lewis é ex­­pert em tevê, e tem no currículo 44 episódios de CSI. Por aqui esta credencial vale pouco.

Na trilha dos samurais

Prolífico (mais de 80 filmes), sanguinário, paroxístico. Desconcertante. Versátil (faz filmes infanto-juvenis e dramas intimistas). Há mais definições à mão para o japonês Takashi Miike. Outra delas é de amigo e influência de Tarantino. Seu filme em concurso é 13 Assassinos, remake do filme homônimo dirigido em 1963 por Eichi Kudo. Que por sua vez havia sugado fundo e forma de Os Sete Samurais, do sempre seminal Akira Kurosawa.

No Japão, época feudal do sho­­gunato, em plena transição entre a Idade Média e a Moderna, um déspota quer tomar o poder do irmão. Tem imunidade para qualquer ato de barbárie.

Para interromper esta tentativa de ascensão ao poder, entram em ação os 13 guerreiros do título. Depois da primeira etapa de arregimentação e preparação deste pequeno exército, a segunda metade marca o duelo espetacular num pequeno vilarejo. Nuvens de flechas, duelo com espada, explosões violentas. Um luxo de ação e aventura, mas nada além disso.

Solitários números primos

O melhor do filme italiano que completou o time doméstico é o título inteligente: A Solidão dos Números Primos, o mesmo do best seller que originou o roteiro.

Saverio Costanzo dirige quase esquematicamente a adaptação que ele e o próprio escritor fizeram do livro. É, ou deveria ser, um acurado estudo sobre o encontro da solidão de duas pessoas que, em certo momento do começo de suas vidas, sofreram agressões externas que mudaram sua fisiologia e impuseram também sérias fraturas psicológicas.

A previsibilidade acaba desestabilizando a equação matemática do filme e subtraindo a adesão do publico e da crítica, que o apreciaram mas longe de morrer de amores.

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