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Frank McCourt costuma dizer "Minha vida salvou minha vida". Estranho, vindo de alguém que teve uma infância infernal nos cortiços de Limerick, na Irlanda. Se você leu o livro ou assistiu ao filme Cinzas de Ângela, sabe o significado desse "infernal".

A família McCourt viajou para os EUA porque lá era a terra das oportunidades, mas a Depressão – anos 20 e 30 – tornava tudo mais difícil para todo mundo. A Irlanda já não parecia tão ruim. Decidiram voltar, mas, antes, tiveram tempo de fazer Frank, que nasceu em Nova Iorque e se criou na terra da cerveja Guinness.

Aos 19 anos, o escritor juntou o quase nada que tinha, incluindo uma obra completa de Shakespeare, para refazer a viagem tentada pelos pais. Foi para Nova Iorque a fim de ser qualquer coisa – o ímpeto era de se afastar da tristeza e da miséria que deterioravam Limerick.

Trabalhou no cais nova-iorquino carregando e descarregando o que saía ou chegava lá. Então foi chamado para servir o exército americano durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de dois anos na Alemanha, ganhou uma bolsa do governo para estudar e se tornar professor.

McCourt conta que jamais se imaginou professor, nem nos delírios mais ousados. No entanto, sobreviveu 30 anos dando pelo menos cinco aulas por dia para alunos do ensino médio em troca de um salário miserável. Ele fala sobre as frustrações e alegrias da profissão no seu terceiro livro, Ei, Professor (Tra-dução de Rubens Figueiredo. Intrínseca, 272 págs., R$ 39,90), lançado há pouco no Brasil.

A obra funciona como um terceiro volume de memórias, pois o autor abordou sua infância e a história da família em Cinzas de Ângela (esgotado nas livrarias), e falou sobre sua vida nos EUA em ‘Tis (inédito no mercado brasileiro). Ei, Professor surgiu como um desdobramento do segundo livro. De acordo com McCourt, o tema merecia mais atenção.

A certa altura de Cinzas de Ângela, as pequenas tragédias diárias vividas pelos McCourt chegam a ser um teste de resistência física. A vida em Ei, Pro-fessor não é tão difícil (ao menos não aparece nenhuma criança doente ou esfomeada sem ter o que comer), mas o estilo narrativo é o mesmo, coloquial, bem-humorado e com diálogos inseridos no texto sem aspas nem travessão.

Na tradução ao português, era impossível reproduzir o sotaque do inglês falado por irlandeses em Cinzas... – tido como um dos talentos do escritor. Agora, Rubens Figueiredo conseguiu transcrever com precisão a verborragia dos alunos de McCourt. Ela é responsável por alguns dos momentos mais hilários de Ei, Professor.

Quando tenta levar os adolescentes para ver um filme italiano no cinema, o escritor anota: "Eles simplesmente não querem filmes com todas aquelas legendazinhas idiotas embaixo que passam tão depressa que nem dá para acompanhar a história direito, e quando tem neve no filme e as legendas são brancas então como é que se pode ler alguma coisa?".

O escritor tem uma ironia irresistível – é quase impossível não gostar de um sujeito que consegue rir de si mesmo. Pegue o prólogo das memórias (confira trecho transcrito nesta página), ele é uma amostra do conhecimento de McCourt sobre seu passado e sua personalidade.

Essa autoconsciência aparece ao longo da ação e, às vezes, o escritor septuagenário não perdoa o professor trintão. "Se eu tivesse algum tipo de inteligência, além da mera capacidade elementar de sobreviver, teria tentado proceder a uma dolorosa reavaliação da minha vida. Mas eu não tinha o menor talento para a introspecção", escreve sobre um dos vários tropeços pedagógicos que experimentou.

O autor consegue proezas como descrever episódios edificantes sem cair na pieguice. Não faltam jovens com famílias esculhambadas, filhos adoráveis de imigrantes que trabalham como escravos e adolescentes rebeldes amansados pela convivência com um professor perseguido, basicamente, por ser criativo e se importar com os alunos.

Através de métodos pouco ortodoxos, McCourt deu um jeito de ensinar inglês para alunos que só queriam matar aula perguntando sobre a vida na Irlanda. Falando sobre si, o então professor descobriu que atraía a atenção dos estudantes. E conseguir ser ouvido era um bom começo para alguém que não sabia nada de nada. Também assim, sua vida salvou sua vida.

Desespero

Frank McCourt diz ser "um professor que se tornou escritor". Sobre suas origens, não se identifica com a América nem com a Irlanda. "Sou nova-iorquino", responde, em entrevista ao Caderno G.

Ao contrário de memorialistas americanos como Mary McCarthy (Memórias de uma Menina Católica), chegados no jogo entre fato e ficção que embala um relato autobiográfico – inclusive porque ambos emprestam recursos um do outro –, McCourt não admite esse tipo de nuance. "Não há ficção nos meus livros."

Vencedor do Prêmio Pulitzer em 97 e do National Book em 96 por Cinzas de Ângela, diz não ter se acostumado com a fama. Enquanto trabalhava nas escolas secundárias de Nova Iorque, lamentava a timidez e a falta de ambição para escrever. Aposentado, deu início ao que chama de "o segundo ato" de sua vida, dedicado a fazer literatura.

Ele usa uma palavra para explicar o que foi preciso para superar seus entraves e virar escritor: "desespero". Hoje, trabalha em um livro novo – seu primeiro romance – e espera que ele (o livro) diga que caminho seguir.

Se tivesse direito a um "terceiro ato", McCourt escreveria peças de teatro. Talvez as escreva. Para alguém cuja estréia literária aconteceu aos 66 anos, debutar no teatro com quase 80 é fichinha.

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