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Milton Hatoum experimenta um tipo de onipresença. Há pelo menos uma semana que seu nome aparece em toda parte. Jornais, revistas, televisão e internet foram mobilizados pelo lançamento de Cinzas do Norte (Companhia das Letras, 312 págs., R$ 39). Em 16 anos, é apenas o terceiro romance do escritor manauara – o que já justificaria tanta atenção. Mas tem mais.

Hatoum venceu o Jabuti de melhor romance em 1990 por sua estréia, Relato de um Certo Oriente. De lá para cá, ganhou traduções em idiomas suficientes para ser lido em pelo menos dois terços do planeta e escreveu Dois Irmãos. Este deve ganhar uma versão para o cinema pelas mãos da roteirista estreante Maria Camargo.

A pronúncia correta de seu sobrenome é "ratúm" e, na origem libanesa, deriva do verbo "despedaçar" – perfeito para um escritor que não se incomoda de dilacerar amizades, famílias e ilusões em sua prosa. Cinzas do Norte se desenrola sobre as vidas de Lavo (corruptela de Olavo) e Mundo (Raimundo). Amigos de infância que vivem em Manaus e seguem rumos diferentes a partir da ditadura militar. Eles representam dois modos de vida distintos – um é aventureiro e artista (Mundo), o outro, conformado e advogado (Lavo). Porém, ambos estão destinados à frustração.

"Quis, de fato, escrever um romance da desilusão, o que não é descabido num país como o nosso", disse Hatoum ao Caderno G. A seguir, confira os melhores momentos da entrevista.

Caderno G – Você disse (ao Estado de S. Paulo) ser muito cobrado por causa de sua origem. Por quê?

Milton Hatoum – Porque não existe uma origem fixa, imutável, única. Ninguém pode dizer: "pertenço somente a este ou àquele lugar". Sou um amazonense de Manaus, que foi uma fortaleza fundada no século 18 para proteger e consolidar a expansão de Portugal na Amazônia. Por volta de 1890, Manaus foi projetada para ser uma cidade européia, e sua população era essencialmente indígena, cabocla e portuguesa. Nessa época, chegaram imigrantes do Marrocos, do Oriente Médio e da Europa. De modo que minha origem significa algo difuso e plural: meus vizinhos portugueses, meu pai libanês, minha mãe amazonense, e toda uma rede de relações de amizades construída ao longo de uma vida. Nenhuma cultura é isolada, e os livros só provam isso.

Você trata Cinzas do Norte como sua obra mais amarga que mostra como única saída a literatura. No fim de tudo, quando acaba também a esperança, de que forma a literatura pode ser "a" resposta?

O narrador do Cinzas do Norte, ao contrário de seu tio Ran, mantém "um fio de esperança". Um fio frágil, mas que não se rompe... Talvez eu seja mais esperançoso do que o narrador, porque a História é um leque de possibilidades, alternativas. É um processo que não se esgota na desilusão ou na baixeza do momento político. O romance é uma transfiguração da realidade, uma das tantas maneiras de ver o mundo. No fim do Cinzas..., o narrador ouve uma conversa numa praça da zona sul do Rio. Alguém comemora o fim do regime militar, e outra pessoa pergunta: "E o que vem por aí?". O romance não dá resposta, mas lança ao futuro respostas possíveis. Quis, de fato, escrever um romance da desilusão, o que não é descabido num país como o nosso.

Se você pudesse escolher os atores e o diretor para a versão cinematográfica de Dois Irmãos, quais seriam?

Para ser mais modesto e realista, escolheria um diretor brasileiro. Há vários atores de grande talento, mas isso cabe à produção, à roteirista Maria Camargo e ao próprio diretor. Prefiro não entrar nessa questão, porque não quero participar do filme, nem mesmo do roteiro. Romance e roteiro trabalham com linguagens e ritmos diferentes, e eu não teria tempo nem paciência nem talento para adaptar o livro para o cinema. Passei quatro anos da minha vida lutando contra os dois irmãos e seu clã, e agora só quero distância dessa turma.

Qual livro está lendo no momento?

Acabei de ler Palmeiras Selvagens, de William Faulkner. Vou escrever um artigo sobre esse romance e publicá-lo na revista EntreLivros.

Jornalistas gostam de ressaltar o tempo que você leva entre um romance e outro, que apenas três livros foram lançados em quase 20 anos de carreira. Como é o seu processo de criação?

Quando parei de lecionar na universidade, meu ritmo continuou lento, mas ganhei mais tempo para ler e escrever. O fato é que em 15 ou 16 anos publiquei três romances, uns oito contos e dezenas de ensaios. Fiz várias conferências e palestras, traduzi dois livros. Tentei fazer essas coisas com a máxima honestidade intelectual, e só publiquei manuscritos que passaram por uma severa leitura crítica. Tenho muitos textos inéditos, mas não gosto de publicar qualquer coisa. Talvez seja uma auto-exigência, uma maluquice minha. Levo muito mais tempo para escrever do que para pensar no assunto, na matéria. Aliás, não penso na trama, deixo que ela venha atrás de mim, como dizia Jorge Luis Borges. E sempre começo o texto pelo capítulo final. Escrevo sobre os personagens, quero saber mais ou menos quem são, como se articulam uns com os outros, etc. Depois faço um esboço da narrativa, e recupero um pouco minha prática de arquiteto. O resto, ou seja, quase tudo, vai aparecendo no tempo longo da escrita. Um romance é uma corrida de 5 mil metros, é preciso ter fôlego e paciência para chegar ao fim.

Você lê autores paranaenses?

Leio vários. Dalton Trevisan, Valêncio Xavier, os contos de Jamil Snege, cuja obra devia ser mais conhecida. Talvez tenha sido prejudicada pela falta de divulgação e distribuição. Conheço alguns jovens, como Miguel Sanches Neto (colunista da Gazeta do Povo), que extrai da casa da infância os dramas de suas narrativas. Alguns da minha geração, como o meu amigo Cristóvão Tezza, que acompanho desde a publicação de Trapo, e também Wilson Bueno e José Castello, um carioca adotado por Curitiba e seus fantasmas. Infelizmente é impossível acompanhar o trabalho dos mais jovens, porque hoje se publica muito. Só em Manaus, há 132 poetas em plena atividade.

Qual é o sentimento que o embala a escrever um romance?

É antes uma inquietação, um problema ou conflito... Tudo o que escrevi vem de alguma ruptura com o passado, uma espécie de acerto de contas. Bom, quando você envelhece, o passado se expande, não se limita mais ao mundo da infância e da juventude.

Você disse que "Sair de Manaus significa romper com muitas coisas." Quando se deixa a província, o que fica para trás?

A memória... um mundo para ser reinventado. O Cinzas do Norte começa com essa evocação de um fogo escondido que reacende a memória do narrador. Saí da minha cidade quando tinha 15 anos, e isso foi determinante para a minha vida e, depois, para a literatura. Deixei a família, os amigos, e fui morar sozinho em Brasília. Essa foi a maior ruptura, e talvez uma violência.

Breve biografia

* Filho de pai libanês muçulmano e mãe amazonense, Milton Hatoum nasceu em Manaus (AM), em 1952. Foi professor de Literatura na Universidade Federal do Amazonas e professor visitante da Universidade da Califórnia em Berkeley.

* Lançou seu primeiro romance, Relato de um Certo Oriente, em 1989 (vencedor do Jabuti de melhor romance no ano seguinte).

* Onze anos depois, em 2000, publicou Dois Irmãos.

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