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Música

Embolada do tempo

Em Ciranda Mourisca, Alceu Valença recupera canções pouco conhecidas dos seus 35 anos de trajetória

Aos 62 anos, entre Olinda e o Rio de Janeiro,Valença vai dos sons do sertão aos do Oriente | Marcelo Correa/ Divulgação
Aos 62 anos, entre Olinda e o Rio de Janeiro,Valença vai dos sons do sertão aos do Oriente (Foto: Marcelo Correa/ Divulgação)

Alceu Valença é muitos. Uma dessas nuances diz respeito à incrível capacidade de verbalizar continuamente. Por telefone, de sua casa em Olinda, ele fez, a pedido da Gazeta do Povo, uma breve síntese da cidade pela qual é enamorado: "Olinda tem sete colinas de onde se vê o mar, flores, casarões e igrejas. Olinda tem o carnaval mais espontâneo do Brasil, com maracatu e frevo de rua. Há muita história, muitos pintores e, principalmente, muito azul."

E azul é elemento presente em Ciranda Mourisca, o mais recente projeto do artista pernambucano. O álbum, de fato, é de Valença. Apenas saiu, licenciado, pela gravadora Biscoito Fino. Ele é guerreiro. Depois de 35 anos de trajetória, e mais de três dezenas de registros em estúdio e ao vivo, não quer mais saber de gravadoras. Já passou por muitas: Copacabana, Som Livre, BMG Ariola, Polygram, RCA, Odeon, Abril, Sony e Indie. A pressão por incluir (ou excluir) canções não existe mais. Agora, o que há é "sussuro de brisa, balanço do mar".

Outros horizontes

Valença gosta de desafios. Em tempos recentes, surgiu a hipótese de fazer um projeto de recuperação da ciranda, expressão cultural nordestina. Na ponte-aérea Olinda-Rio de Janeiro, entre banhos de mar, rodas de violão, batuques de talkdrum e agogô, ele pinçou 12 canções de seu repertório que não se tornaram hits, e dialogam com a ciranda.

O compositor pernambucano, natural de São Bento do Una (criado entre o sertão e a Zona da Mata), observou que havia um elemento comum nas músicas escolhidas: o fator oriental. Pronto, o álbum estava batizado: Ciranda Mourisca.

A formação nordestina não é, nem jamais esteve, imune às influências mouras e mediterrâneas via toque do colonizador lusitano – e isso pulsa nas melodias do respertório no álbum. Gravado entre setembro e outubro do ano passado, Ciranda Mourisca evidencia outra faceta do artista: Valença é obsessivo. Chegou a trabalhar durante 20 horas por dia. Bem gravado e mixado, o CD traz sonoridade que vai do sertão ao mundo das Mil e Uma Noites. Pra lá de Marrakesh? Sim. Longe demais de qualquer obviedade.

Vários palcos

Valença é plural e musicalmente versátil. Tem, no mínimo, três formatos de shows. Um deles é para o primeiro trimestre e as festas momescas. Outro, mais pop-rock, funciona – em tese – o ano todo. E há ainda uma opção intimista para teatros, a exemplo do que insinua o repertório de Ciranda Mourisca. Do Rock in Rio ao Festival de Jazz de Montreux, Valença encontra ressonância em variadas platéias. Só não faz mais turnê. Diz tocar onde chamam. Pode estar em Manaus e, dia depois, em Porto Alegre. E Curitiba? Ah, o Paraná deflagra memórias caras ao artista.

A primeira temporada que passou fora da casa dos pais, aos 14 anos, foi no segundo planalto paranaense. O então jogador de basquete encontrou a sua primeira namorada em Ponta Grossa.

Anos depois, já bacharel em Direito, a década de 1970 a correr, os primeiros discos de vinil gravados, conheceria Curitiba. Dos palcos do Guaíra e do Teatro do Paiol, a logradouros como o Largo da Ordem, a Rua XV e o Passeio Público.

Posteriormente, atravessaria o estado. Maringá, Londrina, Cascavel e Pato Branco, cidade que aglutina muitos de seus admiradores. "Conheço e gosto muito do Paraná."

Coisa de poeta

Valença é poesia. A oralidade de sua fala transborda em suas canções. "Íris,/ Olhando as penas coloridas dos concrises/ Dos sabiás, dos rouxinóis e das perdizes." Nonsense? Surreal? Que nada. Para quem já se embriagou de Luis Buñuel, reprocessando a fonte em um hit como "La Belle de Jour", pouca imagem, metáfora e trampolim para o delírio é bobagem. A cidade de Fernando Pessoa é o elemento deflagrador de um pontos altíssimos deste álbum repleto de excelências: "Ao pé de uma praça/ Chamada Alegria/ Havia uma rua/ Que responderia/ O porquê dessa chuva/ Sem filosofia,/ A grande verdade/ É que chuva chovia", canta Valença, em "Loa de Lisboa".

Ele também é prosa. E, a partir das possibilidades do idioma, da força que a palavra pode ter, conta e canta a vida, como se fosse cronista acompanhado de melodias. Olhos bem abertos, sabe que o amor vai e vem. A partir do que a estrada ensina, consegue e ousa dizer que um beijo pode ter o sabor do mel da cana.

Sonhador, deseja que o seu poema seja leve, seja éter, seja pássaro. Valença, entre outros predicados, tem na simplicidade um dos ingredientes que edificam os pilares de sua sólida trajetória de artista brasileiro.

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