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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba
  • 1º Round - Apesar de todas as provocações a Sonny Liston antes da luta, Cassius Clay entrou tenso no ringue em Miami.
  • 2º Round - À beira do ringue, Joe Louis, um dos maiores pesos pesados da história, pressentiu no fim do primeiro round que algo de inédito surgia naquela noite em Miami. A movimentação de Clay e o desespero do experiente Liston, que não conseguia acertar o novato, ligaram o alerta no velho campeão de que o boxe a partir daquele momento não seria mais o mesmo
  • 3º Round - O público passou a ficar entusiasmado com a apresentação do novato diante do campeão. O próprio Liston começou a perceber o erro que cometera ao não intensificar os treinos para enfrentar o garoto falastrão.
  • 4º Round - No primeiro golpe que recebeu, Clay percebeu uma ardência no olho. Ao ir para o corner, o técnico Angelo Dundee pôs a mão na pálpebra do lutador, que queimava. O estafe de Liston encharcara a luva dele com algum componente químico para atrapalhar a visão de Ali.
  • 5º Round - Com Clay momentaneamente sem enxergar, Liston o castigou impiedosamente. Restava ao novato tentar instintivamente fugir dos golpes e se abraçar insistentemente ao oponente para que o juiz parasse a luta. Mas faltando 30 segundos para o fim do 5.º round, a visão de Clay retornou, sem que Liston conseguisse acertar o golpe definitivo.
  • 6º Round - Com a visão restabelecida, Clay abandonou a movimentação coreografada dos assaltos anteriores, que tanto cansara Liston, e dedicou todo o 6.º round a apenas golpear. Pouco antes do fim do assalto, Clay acertou dois ganchos tão poderosos que ficou espantado por Liston não ter ido ao chão
  • Desistência - Antes de se sentar para receber cuidados nos ferimentos do rosto, Liston soltou a frase que encheu seu estafe de esperança.

Cassius Marcellus Clay Jr. não era apenas o rapaz falastrão que os velhos cronistas da imprensa esportiva americana insistiam em retratar quando subiu ao ringue em Miami, em 25 de fevereiro de 1964. Os golpes, que já haviam garantido o ouro nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, eram tão ou mais rápidos e potentes do que a verborragia sem freio do garoto de 22 anos que ousara enfrentar ao mesmo tempo o campeão dos pesos pesados Sonny Liston e o establishment americano.

Veja fotos da batalha entre Ali e Liston

Naquela noite, que completa 50 anos na próxima terça-feira, o garoto alto e musculoso de Louisville, Kentucky, dormiu pela primeira vez com o cinturão dos pesos pesados. E pela última com o nome de batismo. No dia seguinte, o novo campeão não se preo­cupou em negar à imprensa os rumores de que havia abraçado os fundamentos de uma seita que crescia entre a população negra dos Estados Unidos: a Nação do Islã.

Cassius Clay já era chamado de Cassius X pelos irmãos de seita desde que se convertera em 1961. A letra xis substituía no grupo os sobrenomes cristãos, herdados da dominação branca no período escravocrata. Cassius Marcellus Clay, por sinal, era o nome do fazendeiro proprietário do bisavô escravo do lutador. Um nome que se repetiu por quatro gerações na família, até que o líder da Nação do Islã, Elijah Muhammad, anunciasse, nove dias após a conquista do título, que dali por diante o campeão passaria a ser conhecido por Muhammad Ali.

Surgida no final dos anos 1920, em Detroit, a partir de uma leitura particular da religião muçulmana por parte de seu fundador, o vendedor ambulante Wallace D. Fard – mais tarde Wallace Muhammad –, a Nação do Islã pregava a supremacia negra, com o argumento de que o negro era o homem original e supremo criado por Alá.

Há mais de 6,6 mil anos, defendia Wallace Muhammad, um gene mais fraco da raça divina fora aperfeiçoado por um cientista sórdido de nome Yacub. Preso e exilado por questionar os preceitos islâmicos, Yacub decidiu se vingar criando uma espécie humana de pele clara, que ao longo dos séculos assumiu o controle do mundo exterminando e escravizando os escolhidos de Alá.

Diante disso, pregava a doutrina, cabia a todos os "homens íntegros", ou seja, aos negros, reerguerem a civilização perdida. Um conceito que nas décadas seguintes aos anos 1970 perdeu força, fazendo com que a Nação do Islã e o próprio Muhammad Ali se voltassem aos preceitos originais do islamismo.

O primeiro contato de Clay com a Nação do Islã ocorreu aos 17 anos, em 1959, em um torneio amador de boxe em Chicago. Na volta para casa, o pugilista levava na mala um disco com sermões de Elijah Muhammad. Chegou a Louisville disposto a fazer um trabalho escolar que mostrasse aos colegas de classe o poder negro pregado pela seita, mas acabou persuadido pela professora.

Converteu-se de forma discreta em 1961, quando se mudou para Miami, onde passaria a treinar com o lendário técnico Angelo Dundee. A conversão de Clay, como a de qualquer outro lutador, não tinha o total consentimento de Elijah Muhammad, que considerava o boxe uma depravação.

Quem de fato abriu as portas da Nação do Islã ao pugilista foi Malcom X. Malcom Little, um ladrão e traficante que agia em Boston e Nova York na década de 40, se convertera aos Muçulmanos Negros, como também era chamado o grupo, na cadeia, em 1948. Tornou-se o mais eloquente ministro da seita, capaz de usar a sua experiência nas ruas para arrebanhar seguidores jovens e de sustentar debates em defesa da causa com os mais variados intelectuais.

Malcom X e Cassius Clay se conheceram em Detroit, em 1962. E de imediato o pregador percebeu que a dedicação e entusiasmo do rapaz à doutrina, aliados à sua autoestima e à iminência da conquista do título mundial poderiam representar um ganho para o grupo. Tornaram-se amigos inseparáveis, até a luta de fevereiro de 1964.

Mais do que o fato de ter lutadores entre seus seguidores, o que mais incomodava Elijah Muhammad era a influência do poder retórico de Malcom X entre os fiéis. Enquanto Elijah Muhammad fazia sermões modorrentos, muitas vezes com mais de três horas de duração, Malcom tinha a comunicação direta com os irmãos. Um dom que poderia enfraquecer a liderança de Elijah Muhammad.

Em 1963, quando Malcom X deu uma declaração infeliz a respeito da morte de John Kennedy, Elijah Muhammad teve o argumento que precisava para isolá-lo. "Aqui se faz, aqui se paga", declarou o número dois da hierarquia da Nação do Islã em um discurso no Harlem, Nova York, insinuando que o presidente dos Estados Unidos pouco fizera para conter a violência contra a população negra.

A declaração intensificou o monitoramento do FBI às ações dos Muçulmanos Negros. Gerou também uma onda de revolta em todo o país contra a Nação do Islã. Inclusive entre os afrodescendentes.

Os organizadores do confronto em Miami chegaram a pedir que o ministro, figura carimbada nos treinos de Clay, se afastasse do lutador. O medo era não só de perder público na luta, mas também de que algo pior ocorresse a Clay até o confronto diante da ligação dele com Malcom X. Para não prejudicar o amigo, o pregador concordara em deixar a cidade.

Malcom X também demonstrava desapontamento com o direcionamento da cúpula da Nação do Islã. Enquanto pregava retidão, Elijah Muhammad engravidara duas secretárias sob a alegação de que tinha permissão de Alá para espalhar sua semente divina.

A ostentação com joias e carros de luxo também o incomodava. Junto com o comentário sobre Kennedy, as críticas à forma como o grupo vinha sendo conduzido serviram para intensificar a ofensiva de Elijah Muhammad a seu oponente. E o líder da Nação do Islã soube muito bem por onde atacar seu desafeto.

Quando ouviu no rádio o anúncio de que o campeão – a quem até então o chefe da seita insistia em questionar como legítimo seguidor de Alá – adotaria um nome muçulmano, Malcom X teve certeza de que o amigo fora usado para atingi-lo. "Muhammad Ali é o nome que darei a ele enquanto acreditar em Alá e me seguir", declarou Elijah Muhammad. O anúncio tivera um objetivo muito claro: mostrar de que lado Ali escolhera ficar na briga pelo poder na Nação do Islã.

Em maio de 1964, Ali e Malcom X se encontraram por acaso em um hotel em Acra, Gana, quando ambos viajavam pela África. O ex-pregador da Nação do Islã vinha de uma peregrinação a Meca, onde tivera contato com muçulmanos brancos que fortaleceram sua percepção de que não havia cabimento no uso da religião para defender a supremacia de um homem diante do outro.

Após se cumprimentarem, o campeão tratou Malcom de forma fria. "Você se afastou do venerável Elijah Muhammad. Um grande erro, irmão Malcom", limitou-se a dizer o campeão na curta conversa.

O FBI interceptou em outubro de 1964 uma proclamação dos Muçulmanos Negros determinando a morte de Malcom X. No Muhammad Speaks, jornal fundado por Malcom X para difundir os preceitos da Nação, artigos enfatizavam que ele não escaparia da vingança.

Quase um ano após o encontro com Ali na África, Malcom X foi assassinado com 15 tiros disparados por dois pistoleiros em Nova York. Elijah Muhammad negou participação de membros da Nação do Islã na morte. O que foi reforçado publicamente por Ali.

Um novo atleta

A ascensão de Ali até a conquista do título mundial não chamou atenção apenas pela escolha do islamismo. O boxe assistia ao surgimento de um pugilista negro que pela primeira vez não era regido nem pelo status quo branco e nem pela máfia. Cenário ilustrado justamente pelos dois campeões anteriores a Ali: Floyd Patterson e o próprio Sonny Liston, cunhados subliminarmente pela imprensa de o "negro bom" e o "negro ruim".

Charles L. Liston morrera analfabeto. Foi um dos mais talentosos lutadores da história, mas jamais conseguiu se desvencilhar da pecha de criminoso. Foi preso aos 18 anos por assalto à mão armada, o que os jornalistas faziam questão de explorar a cada reportagem, em detrimento a seu talento.

Ao conquistar o título mundial em 1962, diante de Floyd Patterson, Liston tomou um golpe duro fora dos ringues. Empolgado no retorno a Filadélfia, onde vivia, o lutador preparava um discurso para a multidão que o esperaria no aeroporto. Queria que sua conquista servisse de referência aos jovens, em especial aos presos, que poderiam ver nele um exemplo de regeneração.

Para sua frustração, ninguém, nem o prefeito, nem sequer um único fã, o esperava no desembarque. Só uma meia dúzia de jornalistas com as mesmas perguntas de sempre a respeito do passado criminoso. "Não esperava ser tratado feito um rato de esgoto", confidenciou dias depois a um sparring.

Liston aprendeu a lutar na cadeia, de onde saiu com o destino já traçado pela máfia. Ao aposentar as luvas, passou a trabalhar de cobrador para agiotas e traficantes de Las Vegas. Foi encontrado morto, em casa, em janeiro de 1971. A autopsia apontou overdose de heroína. Para a polícia e amigos, o ex-campeão foi assassinado com a aplicação de uma dose letal da droga, o que nunca foi provado.

Primeiro lutador a conquistar o título mundial dos pesos pesados duas vezes, Floyd Patterson passou 40 vezes pelo reformatório de Nova York antes de ser enviado a uma instituição no norte do estado, aos 10 anos de idade. Lá, além de não sofrer castigos físicos, recebeu toda a atenção de professores, assistentes sociais e médicos.

Os dois anos no reformatório-modelo fizeram com que Patterson nunca mais se envolvesse com crimes. Também fizeram com que aumentasse ainda mais sua devoção como católico.

Patterson começou a lutar na academia de Gus D’Amato, um abnegado do boxe que, mesmo treinando o campeão do mundo, continuou dormindo no quartinho nos fundos de seu ginásio. Jamais se importou com dinheiro, evitava a qualquer custo ter contato com mafiosos e apreciava ler – ia dos cadernos de esportes a Nietzsche.

Por ser um personagem tão rico, D’Amato chamou a atenção da nova geração de jornalistas que despontava nas redações de Nova York com uma narrativa diferente, inspirada na estrutura literária, chamada New Journalism, que os transformaria em escritores renomados. Tom Wolf, Norman Mailer e, em especial, o repórter do New York Times Gay Talese, que acabou se tornando amigo pessoal de Patterson, eram habitués do ginásio de D’Amato.

Integrante do movimento de defesa dos direitos civis, frente liderada pelo reverendo Martin Luther King e que defendia o fim das leis de segregação, Patterson, antes de ser derrotado por Ali em 1965, não escondeu de ninguém que considerava um absurdo que um muçulmano pudesse representar a América. Tanto que se negava a chamar o campeão pelo nome islâmico, referin­do-se a ele somente por Cassius Clay.

O perfil de Muhammad Ali, por sua vez, diferia não só do de Liston e Patterson, como do da maioria dos pugilistas. Cassius Clay fora criado em uma família bem-estruturada de classe média. Não sofrera abusos ou agressões na infância.

Teve acesso à educação, mesmo jamais sendo bom aluno. Fora reprovado no teste de QI ao se alistar no exército, aos 18 anos. Mas em 1966, já campeão mundial, se negou a cumprir a convocação para suprir o quadro de soldados no Vietnã.

"Não tenho rixa nenhuma com os vietcongues. Por que eles querem que eu vista um uniforme e vá para um lugar a milhares de quilômetros para atirar contra o povo do Vietnã, enquanto os negros de Louisville são tratados como cães?", expressou sua indignação.

Enquanto agentes passaram a produzir relatórios diários sobre o lutador, entregues diretamente na mesa do diretor do FBI, J. Edgar Hoover, Ali mantinha a posição. O que custou caro: em 1967, teve o cinturão cassado e ficou três anos e meio sem lutar. Só recuperou o título em 1974, na "Luta da Selva" em Kinshasa, no Zaire, diante de George Foreman.

A entrada de Ali no mundo do boxe aconteceu graças a um brinquedo praticamente inacessível à maioria das crianças negras na época. Aos 12 anos, ao dar queixa a um policial, o pequeno Cassius Clay prometeu dar uma surra no ladrão que levara sua bicicleta.

O sargento Joe Martin, que nos momentos de folga se dedicava a cuidar de um ginásio amador de boxe, perguntou ao menino se ele ao menos sabia lutar. Diante da resposta negativa, o oficial propôs ao guri que aprendesse alguns golpes antes de sair desafiando os outros.

Assim Martin se tornou o primeiro treinador de Ali. E para espanto dos puristas dos ringues que passaram a acompanhar os treinos e lutas de Clay na adolescência, Martin tinha nas mãos um lutador de golpes fortes, mas cuja principal qualidade era a extrema capacidade de se movimentar com leveza e rapidez. Uma característica comum nos lutadores de categorias leves, mas jamais vista antes entre os pesos pesados. Aliada à técnica, havia ainda uma autodisciplina severa com treinos e alimentação sequer vista entre os profissionais.

Tudo isso fez com que um grupo de empresários brancos de Louisville, cujas áreas de atuação nada tinham a ver com pugilismo, investisse na carreira do novato. O que o estimulou a transformar a frase "eu serei o campeão do mundo" em um mantra repetido milhares de vezes até ser realizado dez anos após o episódio do roubo da bicicleta.

A luta

Ao chegar para o confronto com Liston, Ali detinha um currículo invicto de 19 lutas – 15 vitórias por nocaute, quatro por ­decisões unânimes dos juízes, sendo que nove desses confrontos foram definidos antes mesmo do quinto assalto.

O cartel considerável, entretanto, não era suficiente para convencer a imprensa de que o rapaz seria capaz de intimidar o campeão Sonny Liston, detentor de um dos socos mais potentes do boxe em todos os tempos. Mas o jovem Cassius Clay sabia exatamente para onde seus músculos e, principalmente, sua autoconfiança poderiam levá-lo.

Na primeira luta como profissional, aos 19 anos, Clay prometera derrotar LaMar Clark, um oponente oito anos mais velho e com um cartel de 45 nocautes seguidos, no segundo round. Mesmo lutando diante de seus conterrâneos em Louisville, talvez nem mesmo a família do futuro campeão ousaria cravar que ele realmente cumpriria a palavra. Pois na metade do segundo assalto Clay derrubou Clark não uma, mas duas vezes.

"Dali por diante, ele continuou prevendo e ganhando, prevendo e ganhando. Era como um Cândido: não acreditava que nada de ruim pudesse acontecer", descreve Ferdie Pacheco, médico que acompanhou toda a carreira de Ali.

Antes da luta em Miami, Liston só não deu de ombros às frequentes provocações de Clay porque elas não chegaram ao ponto de realmente deixá-lo preocupado, e sim profundamente irritado. Clay havia comprado um ônibus, com o qual viajou a Denver, para onde Liston se mudara empurrado pela recepção frustrante no aeroporto da Filadélfia. Estacionou o veículo na frente da casa do campeão com a faixa "Cassius Clay, o lutador mais versátil do mundo, vai derrubar Liston no oitavo round". Passou quase uma hora gritando para que o oponente saísse à rua e o enfrentasse.

Liston, que não se preocupara em intensificar os treinos para enfrentar um novato ainda pouco conhecido, ficara furioso pela invasão de privacidade. Pensou em sair e dar uma surra no moleque. Mas se lembrou dos problemas com a polícia no passado e deixou para lá. Foram os vizinhos quem chamaram os policiais para tirar Ali e seu ônibus da frente da casa de Liston.

O garoto falastrão de fato venceu Sonny Liston e conquistou o cinturão. Mas não no round que previra. Cansado, sem conseguir atingir o oponente e bastante machucado, Liston desistiu da luta no fim do sexto assalto – dois antes da previsão de Clay. "Engulam suas palavras! Eu sou o rei do mundo!", bradou, ainda do ringue, o jovem campeão mundial dos pesos pesados em direção aos velhos cronistas esportivos.

Muhammad Ali x Sonny Liston - 1964

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