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O tímido e memorioso Rodrigo Madeira traz a literatura para um plano concreto e evanescente | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
O tímido e memorioso Rodrigo Madeira traz a literatura para um plano concreto e evanescente| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

"Mosca Morta"

a retórica das moscas.

o latim das moscas.

as enciclopédias de uma únicaonomatopeia.

há algo de eterno

na mortalidade acicular

de seu discurso

(diferente dos homens).

"Balada da Cruz Machado"

rua-faca, rua-vício

a cruz machado termina

nos pés de uma catedral.

alguém além de deus e

da polícia e taxistas

e putas e vigaristas

cafetões e travestis

sabe que depois das 20

nas calçadas do acinte

beijam latas os guris?

"Você e os Anjos Transitórios"

eu que sou esta florescência de miasmas

cuja alegria é uma careta

cujo sangue é de auroras

cujos ossos são de tijolos e a alma

de querosene

meu sonho será apodrecer

exalando música

eu que guardo uma gaivota na traqueia

que tenho cabelos no coração

e rins de diamante

[...]

eu

coluna de fumaça

espelho quando mente

ferragem retorcida

rosto em branco, sem traços

(como um edifício ou um anjo transitório)

minha cara inconfundível

uma palavra

(r

el

âm

pa

g

o) que não acaba nunca

Era 2010 e Rodrigo Madeira lançava Pássaro Ruim, livro-testamento a encerrar, segundo o poeta, uma era tenebrosa. "Comecei a usar drogas aos 15 anos, quando saí de Foz e vim pra Curitiba com a família. Fui por quase meia vida viciado em cocaína e álcool. Após um tratamento intenso com os Narcóticos Anônimos, me considero limpo", diz Madeira, 34 anos. "Internaram-me, se não me engano, dez vezes, entre clínicas de reabilitação e hospitais psiquiátricos."

Carregado em imagens de decrepitude e potencialmente ao rés-do-chão, reflexo maior de um autor que conviveu por muito tempo com amigos-irmãos que se tornaram mendigos – "o crack arruína mesmo e por pouco eu escapei desse fim" –, Pássaro Ruim passou despercebido à época de seu lançamento. (A edição foi bancada pelo autor e o processo de distribuição ficou por sua incumbência.)

O poeta e fotógrafo Ricar­­­­do Pozzo, um dos coordenadores do Vox Urbe, um dos mais significantes espaços literários de Curitiba, considera "Balada da Cruz Machado" (à direita, abaixo), que integra Pássaro Ruim e foi adaptado ao cinema por Terrence Keller em 2009, o retrato mais pungente da obra de Madeira, "sem dúvida, o maior nome de nossa geração, infelizmente ainda desconhecido de quase todo mundo."

Carpintaria poética

Madeira é um sujeito tímido, recolhido e de memória colossal: "Como dizia Neruda, eu também nasci para nascer". O jornalista Marcio Renato dos Santos, mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e um dos poucos a resenhar o trabalho de Madeira, credita o desconhecimento ao temperamento retraído e à sua baixa circulação no meio. "Ele produz uma poesia de linguagem visivelmente retrabalhada ao extremo, uma espécie de carpintaria poética. É um autor muito, muito acima da média. Talvez excessivamente recluso."

O poeta reconhece uma certa aversão à vida literária de saraus e lançamentos, mas busca não cair na conveniente ética do ressentido. "Falta-me mesmo tino para divulgar melhor minha produção. Não tenho o espírito do mascate, do caixeiro-viajante, talvez indispensável ao fazer literário de nossos tempos. Além de tudo isso, me afastei da vida noturna. Como sou adicto, não posso beber um copo sequer de álcool. Preciso deixar o urso hibernando", afirma.

Madeira dá aulas de inglês, tem dois livros prontos e diz ter se submetido recentemente às portas de quase dez editoras, sem obter respostas. O primeiro inédito se chama Latim das Moscas. Assim como a temática do submundo das drogas, a figura do inseto povoa a poética de Madeira, do gafanhoto que nunca chega a se realizar por sua triste sina de ser um pássaro de alma ruim ao itinerário das moscas, em sua ferocidade e brevidade. "Mosca Morta" (à esquerda, acima), deste novo livro, venceu o Concurso Helena Kolody de 2010.

Reinvenção da vida

Enquanto sai o primeiro gol do Chile na televisão da cafeteria, o santista Madeira conta como conheceu a escritora Lu Cañete em 2007 e desejou um tanto o seu insucesso amoroso. "Ela namorava e lembro bem de dizer a um amigo: ‘Quando ela se separar, eu vou buscar uma aproximação’". Maria Cecília nasceu há dez meses e tem sido uma reviravolta na vida do casal. "Posso garantir que sem a Lu provavelmente não teria saído do buraco que estava. Não é simples desenvolver o amadurecimento do fracasso. Brinco com a minha esposa sobre as noites em claro pós-nascimento da Maria: nossa vida piorou para melhor."

O crítico literário e tradutor Guilherme Gontijo Flores percebe em Madeira este talento de trazer a força interna da vida para o fazer lírico. "É uma poesia urbana que transita entre o grotesco e o sublime, investiga o que é marginal e entrega paisagens surpreendentes", afirma. Para quem escreveu "leminski está morto e fui eu", a poesia é território livre às experimentações. "Ser poeta é ser um deus de bolso, estar sempre à beira do ridículo e do sublime, estudar a suspensão entre a vida e o artifício."

A poesia de Madeira é um encontro dos demônios particulares com a potência inerente da vida. Mesmo em toda a nossa finitude, do relâmpago que logo se extingue, ele parece nos dizer que há, sim, esperança, mesmo quando o poço nos puxa e o vício nos derrota, como no poema "Você e os Anjos Transitórios" (à direita).

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