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Entrevista

Entrevista na íntegra: João Marcello Bôscoli

Presidente da Trama Virtual fala sobre o cenário musical atual

O conceito de distribuição de músicas gratuitamente já acompanha a Trama desde que foi fundada, em 2004. Como foi que você percebeu esta possibilidade?

É uma política nossa, a gente observava isso como promoção. Então, nunca encaramos como um problema.

A base das gravadoras tradicionais é conseguir lucro por meio da venda de CDs físicos, e a mudança deste modelo é recente. Como é possível conseguir lucro por meio da distribuição gratuita?

Através de um patrocinador, como em uma televisão aberta. Eu notei que não só a televisão aberta faz isso, mas como o jornal também. As revistas, os campeonatos desportivos, os museus, o teatro, os videogames, o cinema. Não só dentro do filme, mas também fora, nas salas de cinema. Notei que é uma coisa que permeava toda a sociedade e não tinha chegado à música. Por isso, resolvemos adotar esse modelo e até agora tem funcionado.

E qual a diferença do modelo anterior para o "Álbum Virtual", que até agora foi lançado apenas por quatro artistas da Trama?

Tem um mês e meio apenas, talvez daqui a mais um mês de tempo das pessoas baixarem, de colher os resultados. Ainda é muito "novinho".

É vantajoso seguir esse modelo e não o tradicional?

Sim. Para nós faz muito mais sentido. Primeiro, a gente sempre achou que o formato contemporâneo não seria um só. A gente vende também música, a gente vende o CD físico nas lojas. O Cansei de Ser Sexy está nas lojas, o Ed Motta vai chegar às lojas, o Macaco Bong está nas lojas. Uma coisa não elimina a outra. Mas o nível de receita que você tem vindo do "de graça", me parece que é uma coisa que deve ser experimentada. Uma razão mais recente para isso tem como exemplo uma pesquisa da Folha de S. Paulo que diz que 83% dos jovens nunca compraram música. Então, não serei eu que vou obrigar o cara a comprar. A gente tem que observar o movimento natural da sociedade e ao redor desse movimento natural, criar um modelo de negócios.

As pessoas estão baixando música de graça, não estão? Estão. Por outro lado, o artista precisa receber. Essa equação era um binômio que precisava virar um trinômio. Aí veio um patrocinador fechando. Se você tem um download, você paga o artista. O público, além de pegar de graça, ele pega com segurança, de maneira legal, e remunerando o artista com o qual ele tem essa relação emocional.

Eu queria lembrar que não existe nenhuma outra razão para a pessoa consumir música que não seja uma razão emocional. Você não compra música porque você precisa, é uma eleição emocional que a pessoa faz. Quando você é fã de um artista e você sabe que vai baixar com segurança, sem vírus, legalmente, e que o seu artista vai receber, e você não está pagando nada por isso, por que não? Esse foi o raciocínio que a gente seguiu, e começou com o download remunerado, que permanece. É o download de faixas, e agora em junho começamos com o álbum virtual.

Como você disse, o CD físico também está nas lojas. Mas qual formato rende mais?

Hoje, o que rende mais é o conjunto de todas as ações. Na verdade, a gente encara música de uma maneira diferente desde o começo. Desde o começo, a Trama tem estúdios. Desde o começo, a Trama agencia artistas. Desde o começo, a Trama faz músicas para videogame. Desde o começo, a Trama tem os seus eventos patrocinados. Então, todas essas atividades, quando você junta, você cria um modelo consolidado para o faturamento de música. Então hoje a Trama Virtual tem mais de um milhão de usuários cadastrados, 1.5 milhão de streamings mensais e 300 mil downloads mensais. Todos esses números se transformam em um site que tem uma renda própria e é patrocinado, tem uma receita. Aí você tem o download remunerado, que é outro produto. E aí vai. Você tem agenciamento dos artistas, alguns artistas dos quais a gente cuida da agenda aqui. Tem sonorização de ambientes, a gente sonoriza alguns shopping centers, hotéis e companhias aéreas com artistas da Trama.

Então você tenta abrir cada vez mais o leque de opções dentro da música?

Isso, e a gente nunca fez diferente. As pessoas acharam que isso era uma ação de marketing da gravadora, mas é a forma que a gente trabalha desde o começo. A música consegue incorporar diversas plataformas. Também ganhamos dinheiro com o programa de televisão, nós temos o Multishow, o Radiola, que passa na TV Cultura. Temos os programas de rádio que são transmitidos no Brasil inteiro por mais de 15 estações. Aí tem a rádio Trama dentro do Cinemark, que são 25 milhões de pessoas por ano que escutam. Então se você soma tudo isso, você tem um olhar multidisciplinar sobre a música, que não me impede de olhar os dias de hoje com a conclusão de que há uma crise. Existiu uma crise especificamente em uma mídia, que é o CD pré-gravado e o DVD pré-gravado. Porque até o CD virgem é o disco mais vendido do mundo desde 2004.

Você acha que foi necessário ter um nome para conseguir estes patrocínios?

Não acho que precisa. Você precisa ter algum canal, alguma relação com algum determinado grupo que interesse àquele cliente. Por exemplo, a gente patrocina a Abrafin, que é a Associação Brasileira dos Festivais Independentes. A Abrafin congrega mais de 34 festivais independentes pelo Brasil inteiro. São centenas de bandas participando, e algumas poucas conhecidas. Mas a maioria, mesmo as conhecidas, está chegando agora ao grande público. Agora que a Mallu Magalhães está chegando ao grande público. Agora que o Móveis Coloniais de Acaju começa a ser mais conhecido. Isso não impediu a gente de ter o patrocínio da cerveja Sol. Ela está patrocinando essa relação que essa comunidade de quase meio milhão de pessoas tem com essas bandas. Ela não está patrocinando a banda X ou a banda Y. No caso do Cansei, a Volkswagen patrocinou o Cansei. O Cansei é muito conhecido fora do Brasil, dentro do Brasil eles não são tão conhecidos quanto poderiam. Para a Volkswagen, que é uma marca que trabalha com horário nobre, com artistas como Gisele Bündchen e Sylvester Stallone, e o Cansei não está no mesmo patamar. O que eles estão comprando? Essa relação que um grupo específico de fãs tem com essa banda. Para eles, vale a pena. Essas grandes marcas têm as suas ações de "mass media", mas também buscam ações mais pontuais para falar com públicos específicos. É onde entra, no caso, a Trama. Nesses dias de fragmentação de cultura pop, as marcas vão ao mesmo caminho. A gente tem um número bom, mesmo sendo uma coisa ultra segmentada, nós temos sete milhões de visualizações do site da Trama Virtual mensais.

Quantos artistas estão cadastrados?

60 mil. Você imagina, um lugar que tem 60 mil artistas. Quando uma empresa patrocina o download remunerado, ele não patrocina um corredor, mas sim o campeonato inteiro. Qualquer corredor que desponte, ele estará com o nome dele lá. Estamos negociando com a Vivo a possibilidade de vender música no celular. Enfim, são empresas grandes.

Inclusive, sobre o catálogo de bandas, não há nenhum requisito para o artista se cadastrar, certo?

O nosso princípio é esse. Inclusive, a gente começou antes do MySpace. A gente não começou olhando. Eles são gigantes, são multinacional. Mas a gente começou sem ter nenhuma referência. Então para nós, essa abertura, essa pluraridade, esse direito da autopublicação é uma coisa que a gente apóia. Aí, até gravar na Trama ou gravar em um outro selo, é um outro papo.

Então vocês não tem nenhum controle do que entra no ar?

A gente vê o que entra no ar, só tem um pedido que nós fazemos para que as bandas só coloquem música própria. Você não pode colocar um cover de "Imagine" no ar. Até porque é uma regra, eu falo que é um pedido educado, mas não se pode colocar músicas de outras pessoas.Você tem que ser dono da sua obra. Fora isso, a gente sabe que a média mensal de novos artistas, chega a 1 mil e 500, 1 mil e 600 em alguns meses.

Vocês conseguem passar por todos?

Esse controle é feito, do ponto de vista tecnológico, por um grupo grande de pessoas e por softwares. A gente escuta, vai escutando, tem uma equipe aqui dentro ligada em música. Tem jornalistas aqui, tem o editor chefe que é o Dagoberto Donato que escreve para a Rolling Stone, para a Folha. A gente tem os estúdios da banda em que essas bandas freqüentam. Então, é um trabalho que tem um olhar de alguém. Agora, são 60 mil artistas e 150 mil músicas. Não surgiu do dia pra noite, mas o fluxo realmente é muito grande.

O que é interessante é que eles nem precisam da gente. O que eles precisam é da plataforma e desse espaço onde algumas pessoas entram. Mas eles também precisam de outros lugares, uma Trama Virtual não faz verão.

Como é o processo do artista sair do catálogo da Trama Virtual e passar a usar os estúdios e ser assessorado por vocês?

Aí é um processo que sai da Trama Virtual e entra no selo da Trama. E cada selo tem o seu processo, por exemplo, o NX Zero saiu da Trama Virtual e foi para a Universal. A Universal deve ter os critérios dela para contratar. O nosso critério a gente pensa que a música tem que ter um frescor, e aí é um gosto pessoal. Que se movimente muito, que seja uma banda que você perceba que empreenda, que se mexa. E acima de tudo, o que nos chama muita atenção é a quantidade de shows que a banda faz. Você ter uma banda que faz um show por mês é uma coisa. Mas um termômetro muito bom para a gente é o quanto a banda participa da cena musical no país. O show, para nós, é um grande indicador. Não é a toa que a maioria dos campeões de downloads tem uma agenda de shows grande.

Você acha que o independente, que passou a ser praticamente um gênero musical, virou popular?

Primeiro, o que é um artista independente, pela definição acadêmica: é um artista ou selo que não tem nenhuma ligação com uma das majors. Então se eu tenho um selo que é do Citibank e eu tenho um trilhão de dólares, mas eu não sou ligado nem a Sony, nem a BMG, nem a Warner, nem a Universal e nem a EMI, eu não sou uma major. Nós somos um selo independente. A Mallu é uma artista independente. Eu até entendo que quando as pessoas falam em independente elas falam em um som que ainda não chegou ao mainstream, e que tem o seu público em nichos. Esse é um movimento natural da música. O rock ‘n’ roll começou numa independente. O reggae começou numa independente. Assim como a disco, a música eletrônica. Todos esses gêneros começaram em selos independentes. O que não impede que eles cresçam, que alguns artistas desse gênero ganhem uma força maior e tenham uma visibilidade maior. Você hoje tem o rock ‘n’ roll que já existe há 60 anos pelo menos. Você tem artistas de rock ‘n’ roll que são ultra mainstream, como o Bon Jovi. E você também tem o The Verve, que aqui no Brasil não faz tanto sucesso, The Killers. Terão artistas que são percebidos como independentes que vão fazer mais sucesso e tem outros que até nem querem, e vão ficar em um nicho.

O que existe mesmo é que há dez anos você não tinha uma cena de selos independentes. Nós participamos, junto com vários outros selos, na construção dessa cena independente. Se um dia o Ed Motta saiu de uma major e entrou na Trama, foi porque essa independente passou a existir. Tem uma lista de gravadoras independentes que realizam um trabalho fundamental. Ou seja, o mercado fica mais civilizado quando você tem essas independentes presentes. Porque senão você tem toda a produção do Brasil inteiro a disposição de cinco ou seis gravadoras. Se você não for aceito por uma dessas seis, você está fora do jogo. Ou você é desconhecido tocando na sua garagem ou você está na Sony cantando no Faustão. Nada contra garagem, nada contra o Faustão. Agora, há de existir outras opções. Se você faz uma música e a música não vira em uma major, você não vai mudar seu somo para ser aceito. Você vai buscar um selo onde há um compartilhamento de visão. Você não precisa deixar de ser quem você é para existir.

O Cansei de Ser Sexy, assim como você comentou, faz muito mais sucesso no exterior, e a carreira do grupo é focada para este lado. Há essa preferência?

Sim, no caso deles sim. Eles moram fora do Brasil, já fizeram mais de 400 shows fora, foram capa da New Music Express, venderam mais de 1 milhão de cópias no mundo. Lançaram em 15 países ao mesmo tempo.Elas gostam muito do Brasil, mas realmente não faz diferença.

É dispensável para a carreira deles?

É, e a maioria das rádios que a gente mandou a música aqui falou "ah, isso é bandinha, porcaria, não vai acontecer nada".

Por que você acha que houve essa rejeição aqui?

Sempre há uma rejeição quando é uma coisa nova. De uma maneira geral, as pessoas temem o novo. Uma TV colocar uma coisa nova no ar é um problema. Uma rádio de sucesso, apostar numa coisa nova, é difícil. Mas o novo dá muito trabalho.

E por que houve a aceitação no exterior?

Lá fora também existe isso, mas a diferença é que tem muitas rádios independentes. Quantas revistas de música têm no Brasil? Isso lá fora não existe.

Sobre o papel das gravadoras, hoje em dia é possível que um artista faça tudo sozinho, e como você disse, ele pode se "autopublicar". Você acha que a tendência é que as gravadoras acabem?

Não.

E qual será o papel delas?

A Mallu vai ter que lançar um disco, não vai? Ou ela vai escolher um selo que ela goste, ou ela vai montar o selo dela. A gente não pode confundir o negócio com os gestores do negócio. O que as majors fizeram, aquele modelo de negócio que funcionou por um pequeno espaço de tempo, acabou. É como se você falasse que os donos de uma galeria acabaram com o artista. É verdade, mas a culpa é da galeria? Não, a culpa é da gestão dos donos da galeria. O artista precisa de uma galeria. Seja dele, seja coletiva ou seja uma grande, aí ele escolhe.

Se você for publicar, você vai escolher um selo. Independente de quem seja. O que mudou é que agora não é mais eliminatório, ou era uma major ou não é. Olha para a gente. A gente tem estúdio, e as majors não tem estúdio. A Trama gira ao redor do estúdio. Tem salas de gravação, tem seis ilhas de edição de imagem. A gente tem uma série de outros serviços, a própria Trama Virtual. A Mallu Magalhães é um dos picos de audiência aqui da Trama. Ela lançou através do nosso site. Então a Trama contém um selo, ela não é um selo.

Como você imagina que vai estar o cenário daqui a dez anos?

Como a partir de agora a gestão dos negócios não está mais na mão de seis grupos, tudo pode acontecer. Tem uma banda que é um dos líderes de audiência na Trama que se chama Dance of Days, e eles têm uma máquina de fazer bótons em casa. O Móveis Coloniais fazem camisetas. Tem várias bandas que vendem mais roupa do que o próprio disco. A música as pessoas baixam de graça. Nunca foi tão barato. Hoje, num laptop comum você tem mais tecnologia do que os Beatles jamais viram, e isso não é frase de efeito, é fato. Hoje no seu quarto com um laptop normal você tem mais possibilidades de gravação do que os Beatles usaram na época. Então, mudou tudo. É difícil de prever com previsão, mas a tendência é essa fragmentação da cultura pop, essa possibilidade das pessoas empreenderem e não precisarem de permissão para publicar a sua obra. A gente não pode desprezar a questão da tecnologia, e está na mão das pessoas. Tudo pode acontecer. Antes você tinha dez, 12, no máximo 15 grupos pensando. Tanto que o Skype e o Kazaa apareceram de um moleque da Letônia. O Napster foi criado por um moleque de 17 anos. Humildemente, sem me comparar com esse pessoa, a Trama Virtual começou no Brasil, antes do MySpace.

Quando exatamente começou a Trama Virtual?

Começou em 2003. Oficialmente, foi posto no ar em 2004, mas estava operando desde o final de 2002, em rede pequena.

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