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| Foto: Antonio Costa/Gazeta do Povo

Entrevista com Fernanda Montenegro, atriz.

Fernanda Montenegro esteve em Curitiba rapidamente na se­­mana passada. Veio para entregar o prêmio Dina Sfat à atriz Le­­tícia Sabatella, durante o Fes­­tival de Cinema do Paraná, e para falar sobre seu trabalho com o cineasta Leon Hirszman (1937 - 1987), de Eles Não Usam Black-tie.

Chegou discreta ao coquetel de abertura, no Museu Oscar Niemeyer, mas não pôde evitar que os olhares a procurassem pelo salão, nem mesmo quando buscou um canto mais tranquilo e reservou 20 minutos para esta entrevista à Gazeta do Povo.

Invejavelmente ativa aos 80 anos, Fernanda evita saudosismos com a mesma presteza com a qual se desvia de planos futuros. Orgulha-se, mais do que de um prêmio ou de um papel específico, por não ter perdido o interesse pela vida e pelas pessoas. "Construí uma vida de ofício", diz a atriz, em cartaz atualmente na pele de Simone de Beauvoir, no monólogo Viver Sem Tempos Mortos.

Quando você entrou em contato com as ideias de Simone de Beauvoir?

Em 1949 ela escreveu O Segundo Sexo. Foi a primeira obra que li dela, uma coisa tocante, revolucionária. Contaminou as mu­­lheres do Ocidente, virou uma espécie de bíblia, era algo absolutamente novo sobre a visão do feminino. Retomei (em Viver Sem Tempos Mortos) a minha visão sobre essa obra e esses 60 anos que se passaram tão rapidamente: o que ela mudou em mim, no mundo e no feminino. Deu consciência à mulher do que ela é como ser humano, como criatura.

Como tem sido a temporada?

Fizemos palestras e debates e oferecemos livros gratuitamente. Isso, sinceramente, empolgou plateias por onde a gente passou, mesmo na Baixada Fluminense, que é uma zona bastante destituída de atendimento cultural.

No instante em que a peça flagra Simone de Beauvoir, Sartre está morto e ela revisa toda uma vida. Você se identifica com o momento pelo qual passa a personagem?

Não deixa de ser, principalmente quando Simone fecha os seis volumes de sua autobiografia. O último livro, que ela escreve se chama A Cerimônia do Adeus e é sobre a doença e a morte do Sartre. Ela só poderia escrever isso beirando os 80 anos. Somos duas velhas senhoras lembrando suas vidas.

Ser mulher é algo que a inquieta?

Eu sempre achei ótimo ser mulher. Jamais disse: "Ah, se eu fosse homem." Acho que homem sofre muito. Homem se botou um peso imenso nas costas com esse patriarcalismo que ele inventou. É um ser que às vezes esmaga porque ele é um esmagado. E tem a prerrogativa de ser o absoluto, o senhor, o centro, o provedor. É uma carga muito pesada, eu não queria isso para mim.

De todo o ideário erguido por Simone de Beauvoir, é a questão da liberdade que mais a interessa?

É uma das visões e foi a que me tocou mais do que qualquer outra. Ela diz: ser livre é assustador. É uma responsabilidade imensa. O ser humano tem de saber todo dia o que vai comer, o que vai vestir, em quem votar, se muda de casa, se muda de vida...

A peça se concentra na palavra, é muito comedida fisicamente.

Essa é uma visão com a qual eu entrei em sintonia imediatamente, na direção do Felipe Hirsch. O que ela diz é tão forte que, se você começa a se mexer, perturba. É muito importante ter calma, ouvir o que ela fala como se fosse uma conversa.

Com o Felipe Hirsch, diretor de Viver Sem Tempos Mortos, foram dez anos de "namoro" antes de a parceria acontecer. Entre os demais diretores em atividade, com quais gostaria de trabalhar?

Todo diretor que é inquieto, que traga alguma instabilidade a essa profissão já tão instável, me interessa. Mas não tenho preconceito. Estou disposta a trabalhar com todo artista que tenha alguma coisa a dizer, seja num espetáculo de experimento ou de comportamento tradicional.

Fazer teatro aos 80 anos é diferente de fazer aos 60 ou aos 40?

É tão difícil quanto, tão inquietante e inseguro quanto. Às vezes, você fala uma frase que sai tropeçada como se fosse uma iniciante. Às vezes o coração dispara. É um estado sempre de provar e de provação.

Foram oito anos longe dos palcos desde Da Gaivota, dirigida por Daniela Thomas. Sentiu falta?

Não senti falta, por incrível que pareça. Porque eu fiz quatro ou cinco filmes, fiz novela, minissérie. E sempre que eu trabalho, eu faço teatro. O meu meio de pegar o texto é teatral, posso dosar um pouco mais ou um pouco menos. Eu fiquei oito anos sem subir no palco, mas não quer dizer que eu não trouxe o teatro comigo para onde eu fui.

Você recebeu muitos prêmios, foi indicada ao Oscar, é dita "unânime". Mas, pessoalmente, do que se orgulha mais em sua carreira?

Eu me orgulho de ainda ter interesse na vida. Não é meu mérito, é temperamento, herança genética. Eu me sinto interessada nas coisas que eu faço e que os outros fazem. Eu gosto das pessoas, de ir aos lugares, ler e conversar.

Quando você olha em retrospectiva para a sua carreira, como avalia o que construiu?

Construí uma vida de ofício. O que eu tenho hoje, aos 80 anos? Tenho um trabalho constante em teatro, em televisão, no cinema, no rádio, até mesmo na propaganda. É um mural com altos e baixos, uma hora estou num pique inesperado, maravilhoso, na outra hora é um baque, vou lá para o buraco, depois subo de novo. Eu não destaco porque, como sempre trabalhei muito e me diversifiquei muito, só tenho um painel de trabalho que me formou, me educou, e está aí na memória das pessoas, em documentos e críticas.

A sua formação se deve mais ao estudo ou ao contato com diretores como o italiano Gianni Ratto?

Eu sou autodidata. Gianni Ratto foi o homem que me formou, me deu uma visão do teatro, que não é só entrar em cena com a cara pintada, andar para lá e para cá, falar alto, ter uma aptidão e um histrionismo que você exibe. Além dele, (a francesa) Henriete Morinau, o próprio Fernando Torres, com quem trabalhei muito, Celso Nunes, Gerald Thomas, Naum Alves de Souza. São muitos, estou esquecendo alguém.

Você já experimentou outras funções: produção, dramaturgia, direção?

Um dia, penso em dirigir, mas certamente não serei uma diretora inventiva, serei uma diretora de texto.

Clarice Lispector?

Clarice! Eu e o Hirsch temos essa paixão por Clarice, mas todo ano são fei­­tas duas ou três, a Clarice vem sendo cumprida no nosso teatro.

Você é mais uma espectadora de teatro, cinema ou telenovela?

Eu não sou mais espectadora, eu vou naquilo que me toca. Mas eu diversifico muito. Ve­­jo tea­­­­­­tro, ci­­nema, televisão e ouço mú­­sica adoidado.

O que gosta de ouvir?

Ah, minha fi­­lha, é tudo. Músi­­ca popular, erudita, experimental, sou uma ou­­vin­­te assídua da Rá­­dio Ministério da Educação e Cultura, ouço de música po­­pular a cantos gregorianos.

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