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Cena de “Apocalypse Now”, adaptação para o cinema do romance “Coração das Trevas”. | Divulgação
Cena de “Apocalypse Now”, adaptação para o cinema do romance “Coração das Trevas”.| Foto: Divulgação

Alguns comentários não incomodam nem acrescentam absolutamente nada. É o caso de “o livro é sempre melhor que o filme” e suas variantes.

Manter os mesmos parâmetros para avaliar obras de mídias diferentes é como comparar um carro com um abacate: trata-se de classes diferentes. Há, claro, romances superiores às suas respectivas adaptações cinematográficas – como o oposto também ocorre –, mas o fato é que nosso julgamento, com razões bastante coerentes, sofre para se desapegar da ideia de proximidade. Essa ideia, por sua vez, arrisca-se a evoluir para a perigosa noção de “fidelidade”.

Fidelidade é o que temos, ou fingimos ter, com nossos pares românticos. É o que oferecemos ao time do coração. É o que reservamos ao bar mais querido. A arte não tem fidelidade; não lhe deve fidelidade. A arte não lhe deve nada. E a adaptação, leitor fiel, não é a exceção da criação artística, e sim o padrão dela. Quem afirma é a crítica literária Linda Hutcheon. Se a teórica canadense, expoente nessa área, chegou a essa conclusão em “Uma Teoria da Adaptação” , é minimamente justo levá-la em conta.

Se você supõe que “Hamlet” seja uma obra inteiramente original, criada por abiogênese na cabeça de Shakespeare, engana-se. Partindo de lendas escandinavas, ou do “Amleth” de Saxo Grammaticus, ou da inacessível peça “Ur-Hamlet”, ele adaptou. E criou. A separação entre essas duas atividades, se existe, é bem mais tênue do que costumamos julgar. (Em 1998, quando perguntado sobre quais virtudes são mais supervalorizadas, David Bowie respondeu “simpatia e originalidade”.)

Dessa forma, vale a pena você ser mais receptivo quanto às mudanças que seu livro favorito sofre quando levado à tela. Personagens somem, cenários mudam, há outro foco — ajuda aceitar que, acima de tudo, tratam-se de obras diferentes, ainda que muitas vezes com o mesmo título. Nada no mundo fará jus à sua leitura, processo cognitivo tão íntimo quanto fantástico. Não adianta partir desse princípio.

Uma saída é adotar a terminologia (e a cabeça aberta) de Robert Stam, outro grande nome da literatura comparada: pensemos nas adaptações como próximas ou distantes de seus textos-fonte, e não “fiéis”. “Watchmen”, o filme, é quase uma tradução juramentada dos quadrinhos — portanto, próxima. Já o longa “Apocalypse Now” se distancia totalmente de “Coração das Trevas”, romance ponto de partida. Todas as adaptações de Kubrick se afastam dos romances que lhe servem de início, e isso incomodou muita gente — que bom! Stam postula: lembremos do que é acrescentado em uma adaptação, não só do que é removido.

Quando Sherlock Holmes foi apresentado ao mundo, no romance “Um Estudo em Vermelho”, o detetive disse a um policial que “não há nada novo sob o Sol. Tudo já foi feito antes”. Não havia maneira mais sagaz de demonstrar isso: a frase, por si só, é uma cópia direta de Eclesiastes 1:9. Tudo já está, e sempre esteve, por aqui — nós presenciamos as reescrituras. E é um alívio aceitar aquelas que se assumem enquanto tal.

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