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Hemingway a bordo do barco Pilar, na costa cubana, em 1950. | Biblioteca John Fitzgerald Kennedy/Creative Commons
Hemingway a bordo do barco Pilar, na costa cubana, em 1950.| Foto: Biblioteca John Fitzgerald Kennedy/Creative Commons

8. fev.2010 – Segunda-feira

Aplausos

Quando o avião pousou, todos bateram palmas – não sei se por alívio ou para louvar a ilha de Fidel. No aeroporto, não carimbam o passaporte, para que os passageiros não tenham problemas numa futura viagem aos Estados Unidos.

Havia vários militares com cães farejadores – o clima é mais tenso do que em outros aeroportos.

Embora tivéssemos contratado transporte, não havia ninguém nos esperando. Meia hora depois, achamos o ônibus – e ainda tivemos que aguardar mais de uma hora. No hotel Palco, a atendente levou muito tempo para nos destinar apartamentos.

São 5 horas da manhã no Brasil, 2 aqui em Cuba. Não dormi nada. Não vi ainda esta pequena ficção comunista. Na tevê, um documentário sobre Mario Benedetti – que morou aqui. Há interferência das ondas de rádio.

“Viajar para Cuba é viver um sonho de juventude, um momento matinal. Mas faço isso sem ilusão. Visitarei um mundo em ruínas. Tentarei anotar tudo, seguindo os impulsos de cada momento.”

Miguel Sanches Neto escritor

Delícias de Cuba

São 22h30. Passei o dia andando pelo centro velho. Confesso-me encantado com Havana. Há muita privação, muita privação mesmo, mas não vi crianças em estado de abandono. Velhos pediam dinheiro, mas exibiam roupas limpas e revelavam ter onde morar. No armazém do povo, uma senhora cheia de feridas e com os dentes estragados olhava em pânico o que tinha nas prateleiras – cebola e mais duas ou três coisas do gênero básico. Ela escolheu cebola, com uma voz próxima do choro. Estava, no entanto, bem vestida e limpa. Há uma dignidade nessas privações. Claro, as perspectivas devem ser desesperadoras, mas não haver crianças nas ruas nem moradores sob as marquises compensa um pouco.

Num outro armazém, uma mulher de uns 60 anos tentava levar o pouco disponível, usando a sua caderneta. Exibia uma força altiva no olhar, como se não sofresse com a falta de produtos. Num restaurante, pedimos sobremesa. O garçom disse que ia verificar se havia algo. Apenas sorvete. Tudo é pouco mesmo para quem tem com o que pagar.

Um bar chamado “Las Delícias” vendia cerveja, refrigerante, rum e uns cinco sanduíches de mortadela ou algo similar. Aqui, tudo é mais para o similar do que para o original. A Coca-Cola é substituída por Tokola, uma bebida sem graça. Mesmo o café sabe a algo estragado. Nada me revelou mais a falta de sabor deste mundo de privação do que as frutas no café da manhã. Maçã, mamão, abacaxi e goiaba tão atrativos como isopor.

No geral, Cuba é um país sem sabor. No restaurante, a salada tinha gosto de nada. A batata frita também. Apenas o peixe estava saboroso. Num café, pedi torta de goiaba e nem de longe apreciei.

Livrarias desfalcadas

Estive em duas livrarias. Na primeira (La Poesía Moderna), me chamou a atenção os espaços vazios na loja e nas prateleiras. Ausência de livros. Os poucos eram mal impressos. Estamos tão acostumados com a infinidade enlouquecedora de títulos nas lojas que estranhei um lugar assim tão despovoado.

Com destaque, as obras de Gabriel García Márquez. Folheei os poetas e todos me pareceram engajados demais. No show que vi agora à noite no Teatro Karl Marx, a dança e a música eram ótimas, mas a poesia de um rudimentarismo adolescente. Meras palavras de ordem.

Na outra livraria, Ateneo Cervantes, os livros eram feios, sem sabor gráfico. Mexi em alguns e não senti vontade de ler. Comprei um livro de entrevistas com os poetas da geração de Lezama Lima. E só.

Primeiro dia da revolução

Voltamos ao hotel em um Dodge 1950 – verdadeira relíquia. Havana faz mais sentido quando vista de um carro antigo. Senti-me personagem de outro tempo, o do início da revolução. A ditadura mantém viva a ideia do início. Estão apenas começando, os verbos das propagandas sempre no futuro: venceremos!

Comprei o Granma – no qual Fidel escreve como se hoje fosse o primeiro dia depois da revolução. Esta estratégia mantém a rebeldia viva, mas escancara a sua extemporaneidade.

9. FEV – TERÇA-FEIRA

O que consumir

Levantei às 7, depois de ter ido dormir às duas. Cumpri meus compromissos e fui em busca de uma guayabera, a camisa caribenha. Experimentei várias mas não gostei de nenhuma.

Acompanha-me C., que viaja muito e tem uma segurança no exterior que me falta. Precisamos da instabilidade para perceber o mundo, conhecer as coisas, as pessoas, o sistema político. A estabilidade gera cegueiras.

C. quer apenas comprar mais coisas e gastar pouco. Não quer conhecer. O conhecimento produz um tipo de postura de diálogo. O consumo, de monólogo.

Sim, Cuba me contaminou. A base do pensamento que a criou continua válida: opor-se ao desfrute irresponsável dos recursos naturais. O foco não é apenas a partilha das riquezas, mas o controle do consumo. O comunismo deve nos ensinar a conter os desejos de satisfação psicológica pela compra. Mas será uma pressão para consumir mais que derrubará esses últimos projetos coletivos. A loucura do desfrute tomou conta de tudo. Somos uma época que acredita na posse das coisas como sinônimo de alegria, de realização. Os crimes entre nós não são para poder comer, mas para ter acesso aos bens de consumo.

Esboços de Felipe Lima num Moleskine.Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

10. FEV – QUARTA-FEIRA

Da arte de comprar charutos

Ontem saímos à tarde para uma caminhada pelo centro. Fomos enfim ao Capitólio. Impressionou-me a cena de crianças jogando beisebol na praça. Quase não se vê polícia e a presença de cidadãos na rua nos dá segurança.

Do Capitólio seguimos para a fábrica de charutos nos fundos deste prédio. Compramos alguns Cohibas para dar de presente. Na saída, um jovem nos abordou. Primeiro elogiou o Brasil, dizendo que gostava muito do povo brasileiro, e logo nos ofereceu puros clandestinos. Não quis revelar o preço, convidando-nos a ir até a casa dele. Fomos. No caminho, encontramos um policial que trocou um piscar de olhos com o contrabandista. Todos sabiam do pequeno delito. Há cumplicidade entre os moradores. Na quadra atrás da fábrica, entramos em um prédio chamado China, o nosso guia sempre falante. No térreo, abriu a porta de uma moradia que, no passado, fora comercial. Pé-direito alto, cômodos minúsculos, mas tudo muito asseado. Trouxe uma caixa de Cohibas. E outra de Montecristo, dizendo que os primeiros são os preferidos de Fidel. E fez um elogio destes. Depois explicou que Che gostava de Montecristo.

Os ícones da revolução são os garotos-propaganda de uma economia, tanto no mercado oficial quanto no clandestino, baseada na visita de estrangeiros. É o turismo revolucionário.

Houve negociação e saíamos com mais charutos. C. regateou o preço, combinando voltar no sábado.

Para mim, valiosa foi a experiência de entrar na casa de um cubano. Ele vive modestamente bem porque atua na ilegalidade. Esses charutos foram desviados da fábrica e o vendedor terá que contribuir com o sistema de corrupção – dando parte para alguém. A conclusão é: o funcionário que cuida dos estoques estatais deve estar rico.

Assim, se os altos políticos têm uma vida boa, explorando a revolução, os representantes do povo também a exploram na microeconomia. Ninguém mais vive a revolução, todos vivem da revolução. Ela privou as pessoas de muitos bens materiais, agora permite que se ganhe um pouco com a sua mitologia. Aquelas crianças na praça estariam alegres se seus pais não mercadejassem ilegalmente?

Aprisionamentos

Embora segura, a cidade deve ser muito violenta na sua intimidade. As casas têm grades, levando tudo a parecer uma extensa prisão. Na residência do vendedor de charutos, as portas internas, que dão para o que foi um corredor de comércio, são próprias de cofres. Protegem-se de quem? De alguma máfia? De vizinhos? Na saída do apartamento, houve tensão. Os moradores da frente nos estudaram agressivamente e o vendedor ficou assustado. A mulher dele correu para a porta da entrada do prédio. A paz urbana, assim, é falsa. Há uma guerra civil que não podemos dimensionar.

Presos na ilha. Presos em casas gradeadas. Presos em uma economia controlada pelo governo – onde há duas moedas, o peso nacional e o peso conversível – C.U.C. O cubano recebe do governo em moeda nacional e tudo faz para ganhar em C.U.C. ou em euros. Não gosta de dólar; ao trocar a moeda norte-americana, é obrigado a pagar 20% de multa, o famoso imposto anti-imperialista.

Onde pegar táxis

Mais um dia em Havana. Continuo deslumbrado. E também aprendendo os seus códigos. Para ir ao centro velho, tentei pegar um táxi na rua. Não paravam. Tive que voltar ao hotel. Na rua, sou um cubano, alguém que paga em peso nacional, por isso ninguém se interessou por mim. No hotel e no centro, sou turista e são os taxistas que me procuram.

Esboços de Felipe Lima num Moleskine.Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

12. FEV – QUINTA-FEIRA

Bonecos de Fidel

Almoço no restaurante Polinesio, na cidade nova. Uma visita detestável a uma feira de artesanato, na qual o que mais me chamou a atenção foi a venda de bonecos de Fidel. Enquanto o povo aguarda a sua morte, vai comercializando o ícone. Fidel é um produto de feira para os turistas.

13. FEV – SÁBADO

Urbe humana

Saímos do hotel perto do meio-dia, com destino a Havana Velha. Separei-me do grupo e andei sem rumo pela cidade, observando o cotidiano.

O trânsito confuso é algo humano, pois as pessoas estão pela rua. Carros velhos que não correm. As portas das casas (e dos cortiços) dão para a calçada. Com olhos atentos, devassamos a intimidade dos lares, minúsculos todos eles, com seus móveis velhos, seu chão sujo, as paredes sem pintura. As casas estão integradas às ruas, não há distância entre elas, tudo um único espaço, habitado de forma intensa. Conversas, músicas, crianças em meio ao fluxo de carros – a urbe humanizada.

Água racionada

Hoje é o dia em que as casas recebem água. Então, as ruas estão molhadas porque todos aproveitam para fazer a faxina. Há uma alegria laboral. Muita gente em filas para a comida, para o sorvete, para comprar algo e principalmente para o acesso à internet. Espera-se longa e pacientemente pelos serviços.

Caminho sem rumo, cansando-me, mas sempre incansável. Nada me constrange. Estou em território estrangeiro e me sinto confortável. Sento em bancos nas praças e ninguém me aborda. Deixei de ser o turista para ser apenas um morador.

15. FEV – SEGUNDA-FEIRA

Duas velocidades

Nas estradas vazias, os mesmos carros detonados, caminhões antigos que nos lembram da época da Segunda Guerra Mundial. Motocicletas do mesmo período. Novos apenas os ônibus de turismo. São dois países em um único espaço, que se movem em velocidades diferentes. Duas temporalidades históricas, assim como são duas as moedas.

Nos acostamentos, muitas pessoas pedindo carona. Mostram uma nota de 20 pesos nacionais – quase um dólar – e esperam algum motorista parar. Legiões de cubanos viajam em carrocerias de caminhões. Carroças transportando famílias inteiras e pessoas as mais variadas.

Habana Vieja

À noite, de volta a Havana, saímos pela cidade velha. Não me canso de andar pelo centro histórico, com áreas que estão sendo restauradas. Visitamos o Hotel Raquel, muito chique. Fomos até o terraço e olhamos a cidade. Tinha sido uma loja de tecidos e agora, com a restauração, voltou a ser hotel, destinado a casais.

Depois, estivemos no bar de Hemingway – La Floredita –, um dos sete bares mais famosos do mundo, fundado em 1817. Lá, uma estátua em tamanho natural do escritor. Este é outro produto cultural de Havana: sua obra, sua estada na cidade, os seus lugares prediletos. No Café Oriente, anunciam o prato com a espécie de peixe que Hemingway pescava.

Hemingway e eu

Em La Floredita, escrevo no balcão, ao lado de Hemingway. Todos tiram fotos. No começo, fiquei tímido, mas Ernest escrevia assim, em lugares públicos, procurando a música viva das pessoas. Uso um Moleskine, igual a ele, mas há muitas diferenças, a principal delas: sou um turista acidental, ele vivia Havana.

16. FEV – TERÇA-FEIRA

Questões sobre combustível

São sete horas da manhã, dormi pouco, movido pelo desejo de aproveitar Cuba ao máximo. Hoje, é o último dia desta viagem.

Ontem, passamos o dia todo em Matanzas e Varadero. Na ida, vi torres de extração de petróleo ao longo da orla. O petróleo voltou a ter importância na economia do país. Preocupa a quantidade de carros velhos rodando pela ilha. Eles consomem muito combustível, contra a tendência contemporânea de uso racional de petróleo e controle da emissão de gás carbônico na atmosfera. É o lado trágico dos passeios em velhos automóveis.

Balneário internacional

Em Varadero, o balneário mais famoso de Cuba, ficam os grandes hotéis, e tudo funciona com moedas fortes. Nas lojas, aceitam-se cartões de créditos, o que não vi em Havana.

Varadero é um lugar melhor cuidado do que o resto e encanta pela beleza do mar do Caribe. Não entrei na água. Rodei o pequeno comércio, encontrando lojas de livros, com muitas obras sobre Che, Fidel e Hugo Chaves. Ao longo da rodovia, mensagens da revolução, mas nos hotéis pessoas ricas jogando golfe.

Sócio de tudo

Voltamos para Havana à noite e segui sozinho ao centro. Vaguei pelas ruas me despedindo da cidade. Encontro dois colegas em um bar e eles me contam que a prostituição é legalizada. O governo – sócio absoluto de tudo – mantém casas para este fim – preço de 25 C.U.Cs por programa. Nesses prédios, uma placa com uma âncora (referência aos marinheiros que chegam sedentos à terra firme) e a mensagem: room for rent. Andando pelo centro, vimos alguns desses endereços, fechados, sem barulho, discretos. Uma campainha e nada mais.

Na volta ao hotel, a polícia fazia batida no Malecón – à procura de armas. Foi a única presença ostensiva dela que vi. Vale enganar turista, mas não assaltá-lo. Disseram-me que nos bairros mais distantes, que não se favorecem do turismo, estrangeiros são perseguidos.

17. FEV – QUARTA-FEIRA

A casa como estilo

São 8 horas e estou no avião da Copa Airlines – saímos de Cuba às 6h30. Praticamente não dormi nesta noite, pois tivemos que deixar o hotel às 3 da madrugada.

Ontem, fomos pela parte da manhã à Finca Vigia, a chácara de Hemingway, a 12 quilômetros de Havana. Fica em uma colina, com vista para o mar, o que deve ter lhe dado o nome. Hoje, uma área pobre, com as edificações, o comércio e o trânsito confusos.

A casa é pequena e simples, com livros em todos os cômodos – até no banheiro, onde as paredes exibem anotações feitas pelo escritor. A casa é um verdadeiro laboratório literário. Hemingway se valia de vários cômodos para trabalhar – o quarto na ponta esquerda era o seu predileto e é nele que fica a sua máquina de escrever, sobre um armário – o caçador gostava de datilografar em pé. Os móveis são simples, desenhados por Mary e construídos na ilha. Chama a atenção o closet, com seus chapéus, botas e as roupas que usou na guerra. Um sino na entrada servia para que festejasse a chegada dos amigos.

Hemingway olhava o mar

Nos fundos, construiu uma torre, com janelas em todos os lados, um farol que ele usava como escritório quando havia visitas. Neste isolamento, escreveu livros importantes como O Velho e o Mar.

Fomos ver o seu barco – Pilar. É o que está melhor conservado. A casa precisa de reparos e a chácara como um todo apresenta condições ruins.

Em seguida, o almoço no restaurante predileto do autor – La Terraza de Cojimar. Sentamos ao lado da mesa oficial dele, com talheres e louças, separada por um cordão de isolamento. Contemplei pela janela a mesma paisagem que ele tanto amou.

Apreciação cega

Na parte da tarde, fui ao Museu de Arte Moderna – um belo prédio com uma coleção muito boa. Passei quase 3 horas tomando nota em minha caderneta de mão. Como não conheço a história da arte cubana, pude fazer minhas apreciações sem nenhum condicionamento crítico. É visível a força da cor local e da temática popular. Também ganha relevância o engajamento, mesmo antes da revolução, mostrando que esta traduziu um desejo de mudança que está no âmago da arte do país. Depois da revolução, o engajamento cresce muito mais. São várias as representações de Che (epicentro da comunicação revolucionária), Fidel e José Martí.

Interessam-me os artistas mais independentes da linguagem estética de cada momento, aqueles que não são paradigmáticos. Fazem-se mais autênticos, pois em arte destoar é vital.

O passado

Agora estamos descendo no aeroporto do Panamá – Cuba ficou definitivamente para trás.

Miguel Sanches Neto tem 35 livros publicados. O mais recente é o romance A Segunda Pátria, pela Intrínseca. Ele vive em Ponta Grossa, no interior do Paraná.
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