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Caricatura de Oswaldo Cruz | J. Carlos/Reprodução
Caricatura de Oswaldo Cruz| Foto: J. Carlos/Reprodução

Quanto tempo deve se passar para que um acontecimento seja considerado histórico? Em seu “O Romance Histórico” (1937), o crítico búlgaro Georg Lukács (1885-1971) prescreve que uma narrativa desse gênero se passe muito antes da época em que vive o escritor. É assim com os clássicos do gênero do século 19 que ele admirava, como “Ivanhoé”, que Walter Scott (1771-1832) situa no século 13, enquanto João sem Terra tenta destronar Ricardo Coração de Leão; e “Os Noivos”, em que Alessandro Manzoni (1785-1873) retorna ao século 17 para relembrar os efeitos da peste na região de Milão.

Já Tolstói (1828-1910) volta poucas décadas no tempo para sua abordagem filosófico-histórica-ficcional da frustrada invasão de Napoleão à Rússia no belo “Guerra e Paz”. São títulos que revelam ironia e potência surpreendente, contrariando um possível preconceito que a eles atribua um tédio avassalador.

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Hoje, o gênero romance histórico recusa as amarras sugeridas por Lukács – segui-las, aliás, nunca foi sinônimo de qualidade. Escrever sobre algo que se viveu torna-se usual, e inúmeras outras “transgressões” à receita lukácsiana têm povoado as estantes das livrarias – heróis, por exemplo, pululam entre protagonistas (Luís Carlos Prestes e Marighella são tema de lançamentos recentes), quando o mestre búlgaro os queria no pano de fundo, trazendo para o foco da narrativa gente comum.

Uma temática recorrente entre escritores latino-americanos são os horrores das ditaduras recentes. Para a professora da Faculdade de Letras da PUC-RS Maria Eunice Moreira, é fácil selecionar um título entre tantos: “Em Liberdade” (1981), de Silviano Santiago, por ter rompido com o paradigma do romance histórico brasileiro. “É um livro absolutamente magistral, em que as temporalidades se confundem, os narradores se multiplicam e a leitura da história, ao recorrer ao passado, possibilita também a leitura do presente”, escreveu em entrevista à Gazeta do Povo, por e-mail.

[‘Em Liberdade’, de Silviano Santiago] é um livro em que as temporalidades se confundem e a leitura da história, ao recorrer ao passado, possibilita também a leitura do presente.

Maria Eunice Moreira, professora da Faculdade de Letras da PUC-RS.

Publicada justamente debaixo dos anos de chumbo, a obra de Santiago simula uma continuação do diário de Graciliano Ramos “Memórias do Cárcere” (publicado postumamente, em 1953), durante a prisão do autor de “Angústia” e “Vidas Secas” sob o governo de Getúlio, em 1937.

“Em Liberdade” aborda três momentos da história do país num pastiche do estilo de Graciliano: o momento da escrita de Silviano Santiago; os anos 40, em que Graciliano tentava reconstruir a vida; e o século 18, em plena Inconfidência Mineira. Silviano imagina Graciliano pesquisando a atuação política de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), inconfidente que teria sido morto, mas recebido alcunha de suicida. O paralelo com Vladimir Herzog, em 1981, era imediato, e é dessa forma que Silviano usa o passado como alegoria do seu presente para denunciar os abusos da ditadura militar e o papel do intelectual sob repressão.

  • “Era no Tempo do Rei”, Ruy Castro. Alfaguara (2007), 48 pp., R$ 42,90. Dom Pedro conhece o protagonista de “Memórias de um Sargento de Milícias”, Leonardo.
  • “Fantasma”, José Castello. Record (2001), 384 pp., R$ 27. O autor imagina um arquiteto que tenta escrever sobra a história de Curitiba, mas entra num bloqueio e é “assombrado” pela figura de Paulo Leminski.
  • “A Segunda Pátria”, Miguel Sanches Neto. Intrínseca (2015), 320 pp., R$ 34,90. Hitler vem ao Brasil no aquecimento da neurose nazista, e encontra respaldo em comunidades alemãs.
  • “Nove Noites”, Bernardo Carvalho. Companhia das Letras (2002), 176 pp., R$ 39. Sobre o suicídio do antropólogo Buell Quain, norte-americano de 27 anos quando voltava de uma missão entre os índios krahô, no Tocantins.
  • “Em Liberdade”, Silviano Santiago. Rocco (1981). 253 pp., R$ 22,90. Uma continuação inventada para “Memórias do Cárcere” em que o autor mescla três tempos históricos e debate o papel do intelectual diante do poder.

Heróis

Em extensa pesquisa que parte justamente da publicação de “Em Liberdade”, a professora da UFPR Marilene Weinhardt, uma das principais pesquisadoras brasileiras sobre o romance histórico contemporâneo, lista outros traços das obras do gênero publicadas nas últimas três décadas.

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Um deles seria justamente a ficcionalização de personagens históricos, incluindo os tais “heróis” que Lukács queria no entorno, não no centro da narrativa. Na opinião do professor de literatura da Unesp de Assis (SP) Antonio Roberto Esteves, coexistem nas livrarias lançamentos que pensam o herói de forma maniqueísta, ao estilo “século 19”, e obras que partem de uma construção mais moderna em que o protagonista tem várias facetas, como todo ser humano. Um exemplo desse último caso é “O Irmão Alemão”, de Chico Buarque. “É interessante como ele faz brincadeiras com documentos, trabalha com hipóteses, e no final a gente fica sem saber se o personagem existiu ou não.”

Outro traço recorrente é o uso da metaficção, com a frequente inclusão de comentários do próprio narrador, ou a opção por várias vozes que se intercalam. Ocorre também a intertextualidade com o discurso histórico, questionando-se a noção de verdade factual, e com a própria literatura, quando se aborda a vida de outros escritores e outras escritas literárias.

Há outros exemplos como “Em Liberdade”, que não apenas citam outras obras, mas partem delas. É o caso de “Capitu: Memórias Póstumas”, de Domício Proença Filho, que dá chance à moça de olhos de ressaca de contar sua versão do casamento e divórcio do Bentinho de Machado de Assis.

As memórias pessoais também se mesclam ao relato histórico, abordagem muito usada por Carlos Heitor Cony, por exemplo, ou Bernardo Carvalho. Na era do selfie, nada mais compreensível.

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