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“Ele vai matar geral às 6hs.”

Escrita de trás para frente com batom vermelho por uma refém no vidro do ônibus 174 (linha Gávea – Central do Brasil) a frase era o “ponto de não retorno” do roteiro de terror transmitido em tempo real pelas redes de televisão do país no dia 12 de junho do ano 2000.

Naquela tarde de segunda-feira, às 14h30, um homem chamado Sandro Barbosa do Nascimento, de 22 anos, morador de rua que tinha sobrevivido ao massacre da Candelária em 1993, embarcou no coletivo em um ponto na Lagoa Rodrigo de Freitas, área nobre da zona sul carioca com um revólver na mão e sem ideias muito claras na cabeça.

Um dos passageiros flagrou a movimentação de Sandro e conseguiu sinalizar para uma patrulha da Polícia Militar. O 174 foi interceptado na Rua Jardim Botânico, esquina com a Doutor Neves da Rocha, em frente do Parque Lage (bem perto da sede da Rede Globo). O ônibus foi cercado pela polícia. Logo chegaram as equipes de imprensa e “populares” aos milhares.

Ao vivo

A Relespública se apresenta neste domingo (8), às 16 horas, no palco Ruínas (Largo da Ordem. Rua Almirante Barroso – São Francisco) dentro da Corrente Cultural.

O bairro do Jardim Botânico parou primeiro. Depois, toda a cidade do Rio de Janeiro. Em menos de meia hora, todas as televisões do país mostravam o embate da insanidade cruel e amedrontada de Sandro contra a incompetência violenta da polícia carioca. O sequestro do 174 foi o marco zero das transmissões de conteúdo “mundo cão” ao vivo na tevê aberta brasileira.

Há menos de dois quilômetros dali, no vizinho bairro do Humaitá, o baterista Emanuel Moon se preparava para gravar as bases das primeiras faixas que formariam o álbum “O Circo Está Armado”.

Era só o segundo dos 21 dias em que o quinteto teria as lendárias instalações do Mega e o excelente estúdio do Joá em São Conrado para finalizar as gravações do trabalho contratado pela Universal Music.

Como todo o país, no entanto, a banda também parou o que estava fazendo para assistir ao desfecho trágico do sequestro numa tevê dentro do estúdio.

Já perto das 19h, Sandro colocou uma arma na cabeça da refém Geisa Gonçalves e, usando-a como escudo, desceu do ônibus. Um policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope) surgiu por trás com uma submetralhadora e atirou contra Sandro.

O “caveira” porém errou o tiro, acertando a professora de raspão no queixo. Sandro, no reflexo, disparou à queima-roupa três tiros nas costas da refém.

Divulgação

A multidão tentou linchar Sandro, que foi imobilizado por policiais e colocado num camburão. O sequestrador foi morto por asfixia dentro do carro. Julgados por assassinato, os policiais que estavam no camburão alegaram que a morte foi ocasional e foram inocentados.

A história deu origem a dois filmes: o documentário “Ônibus 174” (2002), do diretor José Padilha, e “Última Parada 174” (2008), de Bruno Barreto.

O clima que era de excitação completa pesou sobre o resto do dia de gravações nos Estúdios Mega. O show, no entanto, tinha que continuar.

Quando Moon, enfim, se sentou empunhando o par de baquetas, era justo que ele tivesse refletido sobre como a banda criada na garagem de sua casa em 1989 tinha chegado, pouco mais de dez anos depois, a um ponto em que pouquíssimos artistas de sua geração chegariam: um bom período de gravação com uma equipe de profissionais de primeira linha em um dos principais estúdios do país, tudo bancado pela gravadora multinacional que reconhecia e investia no trabalho da banda.

Criado nos anos 1970, o Mega é um dos cinco principais estúdios de gravação do país. No Rio de Janeiro, divide o pódio com o Nas Nuvens (o estúdio suspenso criado por Gilberto Gil e pelo produtor Liminha no bairro do Jardim Botânico).

Se sua família é daquelas que ainda tem uma coleção de discos (de vinil ou CDs) prensados dos anos 1970 até os 2000, é certo que boa parte deles foi gravada no Mega Estúdios.

De Paulinho da Viola a Charlie Brown Jr; de Chico Buarque a Zezé di Camargo e Luciano, muitos dos maiores sucessos da música nacional foram registrados nas salas amplas do Mega em que mesas e pré-amplificadores da tecnologia mais recente se misturam a emocionantes equipamentos analógicos.

O baterista, porém, não pensou em nada disso. Só tocou suas BPMs nas caixas , pratos e chimbaus. “Só queria acertar o som e tocar da melhor maneira possível. Para nós, tudo o que estava acontecendo era a sequência natural do trabalho da banda”, diz Moon. Nesses quase 11 anos com a Relespública, ele já tinha participado de inúmeras gravações, mas ainda que não mudasse sua forma de tocar, a banda toda sabia que as circunstâncias eram diferentes naquele momento.

Contexto

O texto publicado aqui é um fragmento do quarto capítulo do livro “Capaz de Tudo – A História da Relespública”. Ele conta parte dos bastidores da gravação conturbada do álbum “O Circo Está Armado” no Rio de Janeiro, durante o agitado ano 2000. Na época, a banda era um quinteto e tinha assinado contrato com a gravadora Universal Music.

Plano de Midas

A gravadora tinha um plano para a Relespública e a cabeça que o criou seria a mesma responsável por formatar a maneira com que o som da banda seria apresentado ao mercado nacional: o produtor Rafael Ramos.

Apesar de muito jovem (22 anos em 2000, dois a menos que Fábio Elias), Rafael tinha fama na indústria do disco – um terreno que conhecia bem, já que é filho do produtor João Augusto de Macedo Soares.

O pai dele começou a carreira no jornalismo e se notabilizou por criar, em 1976, ao lado do pesquisador Ricardo Cravo Albin, a Rádio FM Nacional, a primeira a só tocar músicas brasileiras.

Depois, como produtor, ganhou mais de 83 discos de ouro e platina e foi diretor artístico das gravadoras PolyGram, EMI e Abril Music.

Em 1995, por insistência de Rafael, então com 16 anos, João Augusto, à época diretor da EMI, se permitiu escutar com boa vontade a fita demo de uma banda chamada Mamonas Assassinas. O resto é uma história de dois milhões de discos vendidos e sucesso absoluto (e final trágico).

Apesar de tudo, foi o primeiro hit mercadológico de Rafael.

Relespública

Formada pelos amigos Fábio Elias, Emanuel Moon e Ricardo Bastos em 1989, quando ainda eram adolescentes, a banda acabou se tornando o nome mais importante do rock curitibano no cenário nacional. Parte desse sucesso tem a ver com a capacidade de criar uma identidade musical com a cara e o sotaque local.

Entre descobrir os Mamonas Assassinas e produzir a Relespública, Rafael tinha sido líder da banda Baba Cósmica. Um trio que fazia um punk bubblegum com letras adolescentes no estilo “quanto mais idiota melhor” e teve alguns sucessos como “Pedra no Meu Caminho” e “Sábado de Sol”.

Rafael Ramos era mais famoso, contudo, como VJ da MTV, dividindo espaço com Adriane Galisteu e Chris Nicklas na apresentação do Quiz MTV, um game show de perguntas e respostas sobre música entre bandas que durou de 1998 a 2000.

Em 1999, veio o segundo acerto. Em seu primeiro trabalho como produtor para sua recém-criada gravadora independente Deck Music, associada a Abril Music (selo em que o pai era o mandachuva), coordenou a produção do álbum de estreia de uma banda carioca chamada Los Hermanos.

Olhando em retrospectiva, curiosamente, muitas das declarações dadas desde então pelos integrantes do grupo Los Hermanos sobre seu primeiro trabalho são bastante parecidas com aquelas que a Relespública daria num futuro próximo, após se reinventar no álbum seguinte, “As Histórias São Iguais”.

Tanto os barbudos cariocas como os mods do Cabral e da Vista Alegre lamentaram as concessões que tiveram de fazer às ideias da gravadora e também o fato de, talvez intimidados por nunca terem usado um estúdio de grande porte, não terem conseguido preservar o sonoridade “verdadeira” que já faziam ambas formações serem muito incensadas no acanhado circuito alternativo do rock brasileiro da virada do século.

Pode até ser verdade, mas também é fato que sob o comando de Rafael, a banda Los Hermanos conseguiu ao mesmo tempo apresentar sua cara ao país e criar um avassalador hit radiofônico que era tudo o que a gravadora queria.

Imagem icônica do trio fundamental da Reles: Ricardo Bastos, Fábio Elias e Emanuel Moon.

O sucesso dos hermanos contribuiu para que pai e filho seguissem apostando na parceria que consistia em achar boas bandas para Rafael produzir e João lançar e distribuir. Fosse pela Abril Music, ou por outra das grandes gravadoras do mercado em que ele se mantinha bastante influente.

Essas por sua vez estavam atrás da nova “Anna Julia” ou do novo Jota Quest, banda mineira que havia estourado no começo do ano 2000 com o álbum “Dias Melhores”, lançado pela Sony.

Particularmente de olho no segmento rock estava a Universal Music. Já na época a maior gravadora do planeta, a multinacional entrou no mercado brasileiro fincando os dois pés.

O então advogado Marcelo Crivano – que conviveu com a banda e orientou a Relespública no período das negociações do contrato com a Universal (e mais tarde se tornaria o produtor da Reles durante mais de cinco anos) – lembra que o selo na época tinha Cássia Eller e Arnaldo Antunes em seu cast, mas pretendia abrir um novo canal para produzir uma “cara nova” no rock. “A condição era que o Rafael fosse o produtor e, entre todas as opções que tinha nas mãos – pois todas as bandas do país queriam a oportunidade –, o Rafael escolheu a Reles”, diz Crivano.

Se, no caso dos Mamonas Assassinas, foi Rafael que convenceu o pai, na tratativa com a Relespública deu-se o caminho inverso.

Crivano conta que foi João Augusto que insistiu em investir na Relespública depois de ouvir a demo com faixas como “Sol em Estocolmo”, “Capaz de Tudo” e “Ele Era Realmente um Mod”. “Esta banda tem o mais difícil: bons músicos, um bom vocalista e um grande compositor”, vaticinou o produtor.

(...)

Protagonismos

Dentro do estúdio, no entanto, ficou claro desde os primeiros dias que os papéis e protagonismos da banda se alteraram logo nos primeiro ensaios.

Por afinidades de temperamento e referências musicais comuns – ambos eram bateristas e vocalistas –, Rafael Ramos e Kako Louis se aproximaram bastante dentro do estúdio. Na hora das decisões, as sugestões do vocalista pareciam valer mais que a opinião dos outros membros da banda.

“É verdade. Dá pra dizer que eu dei uma crescida [no estúdio]. Ele adorava minhas sugestões para os arranjos, gostava de mexer nas músicas comigo. Ele nunca precisou me dizer o que queria nem como eu tinha que fazer isso e aquilo”, diz Kako.

Se a sintonia entre Rafael e Kako era completa, havia muitos ruídos entre as ideias do produtor para o disco e a marca do som da Reles – reconhecível em dois segundos: o baixo cheio de notas do Ricardo e as viradas de bateria do Moon. Rafael praticamente eliminou os dois das gravações.

“Ele deu uma segurada no som da banda. Ele dizia: ‘Calma, aqui não é um show. A música precisar ser ouvida, as pessoas vão ter que entender a letra’. Nesse sentido, ele deu uma podada, uma limpada no som”, diz Kako.

Um bom exemplo da “incompatibilidade de gênios” na produção do álbum foram os arranjos orquestrais encomendados por Rafael Ramos ao maestro Jota Moraes.

Arranjador e instrumentista da primeira divisão da MPB, profissional desde a década de 1970, Moraes gravou e produziu discos e shows de artistas como Elizeth Cardoso, Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Erasmo Carlos, Chico Buarque e Guilherme Arantes.

Durante 12 anos, foi arranjador, instrumentista, produtor e diretor musical do compositor e cantor Gonzaguinha. Pianista exímio, Moraes também fez parte de duas cultuadas formações de bandas instrumentais brasileiras: o Azymuth e o Cama de Gato.

Rafael pediu ao maestro arranjos para quartetos de cordas e metais para quatro faixas. Metais para a cover dos Mutantes, “Portugal de Navio”, e para “Pesadelos”, de Fábio Elias, que virou quase uma rumba com a participação nonsense de Eduardo Dusek.

Muito bem feitos e inusitados, o arranjos ficaram realmente bons. Porém, soavam tão longe do som primitivo da Relespública quanto o colégio Dom Pedro II é longe do Santa Maria.

O arranjo para cordas do maestro Moraes funciona magistralmente bem em “Carta Amada”, mas foi o símbolo da falta de entendimento e comunicação que marcou a concepção inteira do álbum em “Capaz de Tudo”.

Coisa de gênio

Fábio Elias se lembra de ter sido apresentado a Moraes no estúdio minutos antes das gravações. “Ele chegou com as partituras prontas para cordas, perguntando quem foi que fez essas músicas aqui?”, diz Fábio.

A banda entregou o guitarrista como autor das canções e Moraes veio cumprimentá-lo. “Coisa de gênio, hein, garoto? Este acorde nunca tinha sido usado em todo o rock brasileiro”, disse o maestro.

Moraes se referia ao “dó sustenido diminuto”, o acorde melancólico que abre a sofisticada canção de amor escrita por Fábio Elias. A gravação ficou uma beleza, mas a música saiu do repertório da banda tão logo o disco foi prensado.

Já “Capaz de Tudo” é o hino mod da Relespública. Música símbolo da banda, composta por Fábio Elias quando ele tinha 14 anos, tem tudo aquilo que o rock nasceu para ser: revolta adolescente 360º e inconformismo em três acordes.

Com dois violinos, cello e viola, a música virou outra coisa: uma linda versão de uma ótima música da Relespública, tocada pela própria Reles.

É claro que isso é parte do jogo. Na indústria fonográfica, as histórias também são iguais. A Relespública não foi a primeira banda talentosa que teve seu som e repertório mudados, tolhidos e, neste caso, quase emasculados por uma grande gravadora a pretexto de tornar o som mais palatável para o mercado e para o público.

No caso da Relespública e de “O Circo Está Armado”, porém, a coisa foi mais grave por três motivos.

O primeiro é que o álbum era provavelmente a última cartada possível da Reles numa major. Um fatalismo que tinha menos a ver com a banda do que com o próprio esquema do mercado fonográfico que começava a ruir e, nos anos seguintes, iria conhecer dias de declínio vertiginoso.

Uma revolução tecnológica e cultural mudou a forma de consumir música na virada do século 20 para o 21 a partir da ascensão do formato mp3, dos compartilhamentos pela internet e da pirataria. Uma porrada que a indústria ainda hoje tenta assimilar.

O álbum “O Circo Está Armado” foi uma das últimas apostas altas da Universal no rock.

O segundo motivo, e mais grave, é que o resultado do disco abalou a razão de existir da banda. A Reles não podia mais ser aquela dos ensaios de sábado na casa do Moon, dos shows viscerais e intermináveis, dos BPMs sofisticadas do baixo de Ricardo, das viradas de bateria à The Who, dos terninhos e parkas mod, do bom humor permanente... Boa ou ruim, ela era outra banda.

Nos primeiros 25 anos da Reles, toda vez que a integridade da banda esteve ameaçada, houve reações diferentes que provocaram resultados parecidos: pessoas foram afastadas e contratos, rompidos; o grupo mudou de cidade, parou de tocar por um tempo ou tomou qualquer outra atitude que parecia necessária até que a maré baixasse e só restasse a formação inicial, a velha gangue, o trio. Ou melhor, o “quarteto com um a menos”.

Por fim, a Relespública pagou um preço alto pelas dificuldades de relacionamento criadas entre a banda e a gravadora para a distribuição e divulgação do álbum.

Uma situação que começou a se complicar na famosa e fatídica “noite do pastelão”, que se tornou o evento solene de assinatura do contrato, na churrascaria o Porcão.

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