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Menino, em casa não tinha vitrola, mas eu ouvia rock de Elvis, xotes do Jackson e baiões de Luiz Gonzaga, dançando na frente do rádio. Quando mãe comprou vitrola, primeiro disco foi do Gonzagão, que eu ouvia até a irmã gritar chega.

Na universidade, na cantina a turma de esquerda só botava na vitrola discos do Vandré e outros "politizados". Torceram o nariz quando cheguei com disco do Gonzagão, era música "alienada"; mas ele logo ganhou a turma com sua música tão popular quanto talentosa.

Em dezembro de 71, Apolo Theodoro e eu fizemos viagem hiponga, preferindo os trens porque nos ofereciam romântico sofrimento. Mochileiros dormimos em praias, até que resolvemos ir ao Festival de Guarapari, "o Woodstock brasileiro".

Policiais rondavam o festival, cercado de alambrados, guaritas com soldados. A polícia dizia que hippies eram bichos sujos, foram proibidos de entrar, e mais de mil estavam fora, enquanto lá dentro faltava público, o festival fracassava.

Apolo e eu nem estávamos tão sujos, mas resolvemos ficar entre os hippies por pirracenta solidariedade. Quando, depois de quatro horas, conseguiram ligar o som, Chacrinha pediu calma ao público, que lançava no palco latas de cerveja cheias de areia.

Então Luiz Gonzaga foi chamado para cantar, mas, ao microfone, disse que só cantaria se abrissem os portões "para aquela moçada lá de fora entrar". E ficou sanfonando, só fazendo uma interminável introdução musical na sanfona, de vez em quando repetindo que só cantaria "se entrar aquela moçada lá que não tem dinheiro mesmo, deixem entrar".

Quando deixaram a gente entrar, foi lindo, levantou poeirão aquela hipaiada correndo para o portão, entrando delirante para aplausos delirantes, a melhor cena daquele festival fracassado. Mas foi um sucesso para Gonzagão, que ali fez a ditadura se curvar à arte.

Anos depois, ele foi se apresentar no ginásio de esportes de Londrina, eu era repórter. Fui até o vestiário, descobrindo que ele não tinha segurança, assessor, nada, só a sanfona e ele ali. Falei que era seu fã desde menino, e ele:

– Pra você ver como tô ficando velho...

Perguntei por que cantava em comícios do partido da ditadura, e ele me olhou firme com seu olho bom:

– Filho, eu canto em comício pro partido do governo e pro partido da oposição, é só me convidar, porque em qualquer palco eu canto sempre é para o povo.

O apresentador lá no palco já começava a anunciar O Rei do Baião, e ele pegou a sanfona. Perguntei por que continuava a tocar com a sanfona, não atrapalha o canto?

– Meu filho, atrapalhar não atrapalha, que eu só não nasci de sanfona pra não machucar minha mãe. Mas cansar, cansa. Fazer o que? O povo não ia me aceitar sem a sanfona, faz parte de mim na cabeça do povo, e não sou eu quem manda em mim, é o povo.

E foi, já tocando a sanfona desde o túnel do vestiário para o palco, sorrindo largo, feliz feito menino brincando. Algum tempo depois, enxergando mal, caiu do palco num show, e, por causa da sanfona, fraturou costelas.

Tinha um olho furado por espinho da caatinga. Mas enxergava claro que só, inclusive para escolher seus letristas, como Humberto Teixeira, que para ele escreveu essa maravilha que é "Estrada de Canindé":

"Artomove lá nem se sabe / se é home ou se é muié / Quem é rico anda em burrico / quem é pobre anda a pé / Mas o pobre vê nas estrada / o orvaio beijando as flô / Vê de perto o galo-campina / que quando canta muda de cor / Vai moiando os pés no riacho / que água fresca, Nosso Sinhô / Vai oiando coisa a grané / coisas que pra mode vê / o cristão tem que andar a pé".

A bênção, Gonzagão!

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