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Biblioteca

Confira um roteiro básico para se aventurar pela obra do homem que escreve sobre os livros que leu

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Traduzindo a Flip

Neste ano, pela primeira vez, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) fará as malas, repletas de livros brasileiros, repletas de cultura brasileira, e atravessará o oceano para desembarcar na Inglaterra

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O escritor argentino Alberto Manguel, 65 anos, faz o tipo assumido: vive das letras, mas gosta mesmo é de ler. Pudesse, não sairia de casa, para estar o tempo todo na sua farta biblioteca, no interior da França. Salvo raras exceções em que se aventurou pela ficção, escreve sempre, e muito, sobre o que lê, o que faz dele um perito da citação. Tanto que não é possível falar de Manguel sem citar o soberbo Uma História da Leitura, trabalho que o projetou nos quatro costados. Mas, de uns tempos para cá, o leitor Manguel afinou o discurso. Em entrevistas aqui e ali informa que seu negócio é perguntar. E que procura nos livros como foram dadas respostas às perguntas mais importantes da História do Mundo. Simples como isso. Não à toa, seu próximo trabalho – ainda sem título definido – será uma espécie de tratado sobre a curiosidade, um compêndio sobre as indagações que trouxeram a humanidade até o século 21.

Com perdão ao trocadilho – é curioso. Cansado de dar palestras, de enfrentar aeroportos e de ter interrompida sua rotina de leitor e perguntador, Manguel admite que de uns tempos para cá lhe faltam, ora vejam, as antenas ligadas dos adolescentes. Já não quer saber tanto. Nem conhecer tantos lugares. Nem ter com tanta gente. Reivindica para si o sossego da maturidade, etapa que para ele rima com "re" – reler, revisitar, retomar.

Todas as manhãs, há mais de cinco anos, relê um canto de A Divina Comédia de Dante. Faz anotações e renova a certeza de ter encontrado nessa rotina o melhor da história. Enquanto o leitor não se retira a seu silêncio do monge, o que anda ameaçando fazer, seus leitores continuam acorrendo, por onde quer que ele ande, para ouvi-lo.

Manguel se escusa e diz ter mais fama do que leitores. Mas é com certeza muito maior do que imagina o número de pessoas que veem nele o que os estetas chamam de "leitor ideal". Culto, mas nada esnobe. Profundo, mas claro. Um viajante, mas que leva junto quem estiver em roda. Sortido nas escolhas, elege para si também o que é menor, o que é pop, o que é bom, mas ninguém lembrava.

Admirado, deixa a dúvida sobre como se tornou o que é. Em parte, sempre ajuda a responder. Alfabetizado em inglês e em alemão, antes de conhecer a língua mãe, o castelhano, aprendeu a pensar e a observar a partir de culturas diferentes. Por acréscimo, suas possibilidades numa estante de livros são sempre maiores, pois depende menos de traduções. "Foi sorte", desculpa-se o homem.

Outra sorte foi ter se tornado leitor de aluguel para um Borges já cego, o que faz dessa amizade a campeoníssima entre as perguntas que já lhe foram feitas. É preciso lhe pedir desculpas antes de pedir que fale de Borges, outra vez. Por fim, o barro do qual é feito Alberto Manguel inclui ser um ensaísta. E ensaístas arriscam, traçam hipóteses, experimentam – como se fossem adeptos da nouvelle cuisine. É o que faz.

Alberto Manguel esteve em Curitiba, semana passada, para a conferência inicial do Litercultura, evento que deve ser a semente da semana literária da capital paranaense. Confira trechos da entrevista.

O senhor é um homem de meia-idade, que vive no interior da França e com nome firmado no mundo da cultura. O que o move, Alberto Manguel?

Se eu pudesse não viajar, ficaria em casa, lendo e escrevendo. Mas tenho de ganhar a vida. Ser conhecido não quer dizer que os livros sejam vendidos. Poucos escritores podem viver de seus livros. Tenho de viajar para dar conferências, mas não é o que gostaria de fazer. Já conheci gentes e lugares do mundo o suficiente. Aos 65 anos, não sinto a urgência de saber mais, como quando era adolescente. Não quero ler tantos e tantos livros novos, mas reler e escrever sobre essas releituras. Há cinco, seis anos me propus retomar A Divina Comédia de Dante, um canto a cada manhã. E tenho feito. A cada leitura tomo notas. É o que quero fazer.

Podemos dizer que seus livros ensinam? Ou seus livros ajudam? Seria Alberto Manguel mais um psicanalista judeu, argentino, cuja terapia é feita com o uso de livros...

Nem um nem outro (risos). Não escrevo para ensinar. Seria uma impertinência. E não escrevo para provocar, porque a provocação é um gesto barato. O escritor que quer provocar se interessa mais em como produzir esse efeito do que em se ocupar do que quer dizer. Trato de ser o mais claro possível. Trato de fazer perguntas. É o que me interessa. Quero fazer indagações, as mais claras e amplas o possível. Por isso escrevo. Escrevo o resultado das minhas leituras. Obedeço a uma lei darwi­niana: a literatura se reproduz a si mesma. Foi assim desde a primeira história que contamos.

Em A Biblioteca à Noite, o senhor dizia se perguntar para que servem os livros. Conseguiu responder a essa pergunta, afinal?

É uma pergunta e terei de fazer por toda a vida. Há distintas respostas em distintos momentos. Em certas situações, penso que os livros dão ordem à existência. Em outras, penso que é o contrário disso: os livros estão ali para provocar rupturas.

O que diria aos que afirmam não gostar de ler?

É impossível convencer alguém do prazer da leitura. Não se pode forçar. Eu diria que gostar de ler é como se enamorar. Mas não creio que seja um problema individual. É um problema de sociedade. Nossas sociedades são mercantis. O que as move é o interesse econômico, não o intelectual. A sociedade de consumo necessita construir consumidores. E o leitor é um mau consumidor. É alguém que aprende a se interrogar sobre o universo. A literatura não dá respostas. A literatura dá as melhores perguntas. Se quisermos verdadeiramente ter mais leitores, teremos de mudar a sociedade (risos).

Em seus textos, o senhor demonstra desejar o leitor. O que diria àqueles que estão com um livro nas mãos?

Creio que a espécie humana é uma espécie leitora. Temos em nossa fisiologia o desejo de ler. O mundo para o ser humano é uma história. Lemos a paisagem. Lemos uma nuvem. Lemos o mundo. Quando encontro com alguém que não lê, digo "experimente, você verá o quanto te ajudará a viver". As perguntas que todo ser humano se faz têm uma forma clara e profunda na literatura. Não posso converter uma pessoa em leitora. Mas posso lhe fazer uma promessa: em uma biblioteca – qualquer biblioteca – há uma página ou um parágrafo escrito para você. Ao longo da vida você há de encontrar um texto que contém seus segredos mais íntimos e profundos. É o que posso prometer.

Conhece os índices de leitura no Brasil?

Sei que são baixos. Mas repito o que dizia antes: criar leitores não é um problema individual, mas uma questão de identidade social. Vivemos em uma sociedade na qual o intelectual não é uma figura sexy, desportiva. Mas se for o caso de falar em projetos, gosto de um que vi no México, onde há violência grande. O governo implementou salas de leitura nos bairros. A comunidade cria grupos de leitores com a facilidade com que se formam times de futebol. É muito interessante. Nos lugares em que há salas de leitura, os níveis de violência baixaram 70%. Onde é permitido refletir, a necessidade de se expressar fisicamente é menor.

O senhor disse que já falou 40 mil vezes de sua relação com Borges – e que não aguenta mais contar como se conheceram. Borges o persegue?

(risos) Durante a vida de qualquer pessoa há certos eventos que a definem para si mesmo e para os outros. Conheci, quando jovem, alguém que tinha estado com Kafka. Eu podia tocar alguém que tinha tocado Kafka. Era uma relação fetichista. E tive uma relação com Borges e ele é muito importante em minha vida. Foi um privilégio ser testemunha de sua leitura. Mas tenho de tratar de não pensar em Borges, porque ele é infeccioso. Certos autores têm um estilo tão particular, que são como essas músicas que escutamos e não sabemos como tirar da cabeça. Borges e outros inventaram uma forma de falar e de escrever. Sem querer a gente os imita, e imita mal, é claro.

Umberto Eco e Robert Darnton já se arvoraram tratar em livro o futuro da leitura. O senhor planeja se debruçar sobre o assunto num trabalho específico? Ou já disse o que queria em A Cidade das Palavras?

Em A Cidade das Palavras me interessava ver como as histórias que contamos definem as sociedades nas quais estamos. Creio, sem dúvida, que em certas sociedades há um empobrecimento do poder narrativo. Na sociedade anglo-saxã, e sobretudo na norte-americana, a força narrativa diminuiu. Não há nos EUA, hoje, nenhum escritor comparado a Faulkner ou a Melville. A nova geração é formada por narradores convencionais, formulaicos, que constróem textos para consumo. Pior, há uma tendência a desvalorizar a linguagem. Um dos bons escritores em inglês, Ian McEwan, costuma ser acusado de escrever demasiado bem. Esse fenômeno tem a ver com o empobrecimento da língua inglesa. É algo semelhante ao que ocorreu com o latim, que começou a declinar ao se tornar uma língua universal.

A respeito da leitura na internet, o periodista brasileiro Álvaro Pereira Júnior escreveu que o YouTube matou o passado. Concorda?

Disse isso também. A internet é um lugar sem passado e sem futuro. É um presente constante. E pensar que o "presente constante" era uma das definições do Inferno na Idade Média... O presente constante não tem profundidade. Tudo é superfície. Na internet, tudo existe no momento da consulta. Não necessitamos de memória pessoal para ler na rede. Quando fala da leitura, Santo Agostinho diz que, à medida em que vamos lendo, o que foi lido se transforma em território da memória, em passado. Na internet isso não sucede. Lê-se pedaços de texto e essa é uma característica do instrumento que só será modificada a muito custo.

Continua sem e-mail...

Não tenho tempo. Não preciso consultar 150 e-mails. Seria uma enorme distração.

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