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Hemingway não parou de escrever, mesmo minado por uma série de doenças: diabetes, hipertensão e arterioesclerose | Divulgação
Hemingway não parou de escrever, mesmo minado por uma série de doenças: diabetes, hipertensão e arterioesclerose| Foto: Divulgação
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Dois de julho de 1961, uma ensolarada manhã de domingo em Ketchum, Idaho. O velho levanta da cama às sete horas, pega um fuzil de caça de cano duplo e estoura a cabeça. Em Paris, são três horas da tarde e estou almoçando com Ruth, negra, intelectual de Nova York, um típico romance beat. Ao anoitecer, sentamos na amurada da rive gauche do Sena para assistir ao crepúsculo tardio. Fumamos lentamente um cigarro tibetano e depois vamos dormir num hotel na Rue de Seine. Na manhã seguinte, dou de cara com as manchetes gritantes nas bancas de jornal. "HEMINGWAY DEAD", diz o Daily Mail de Londres. "Alvejado quando limpava a arma. Foi suicídio?"

Vou a uma cabine de 3x4s e tiro uma foto minha exibindo a primeira página do jornal. A sensação de perda é enorme. Numa carta a um amigo, Hemingway escreveu: "Se você teve a sorte de viver em Paris quando jovem, então aonde quer que vá pelo resto da vida ela o acompanhará, pois Paris é uma festa móvel."

Eu tinha dois amigos em Paris: o finlandês Olli Heikkinen e o norte-americano Peter J. Solomon. Nós três – todos com 20 e poucos anos – adorávamos Hemingway. Olli foi viver em Paris com a mulher, uma ex-Miss Finlândia que virou dançarina do Crazy Horse Saloon. Separaram-se e Olli ficou em Paris sem eira nem beira. Foi morar num pardieiro na Place de la Contrescarpe, típico dos primeiros tempos de Hemingway em Paris. Quando começou a passar fome, voltou para a casa do pai, operário de uma fábrica de vidros nas lonjuras do leste finlandês, perto da fronteira com a URSS. Fui visitá-lo na época do sol da meia-noite, pouco depois da morte de Hemingway.

Peter Jay Solomon era filho de uma tradicional família de banqueiros de Nova York e estagiava num banco americano na região da Opéra. Em suas folgas de almoço, comíamos sanduiches no Harry’s Bar e folheávamos os livros da Brentano’s. Também voltou para a casa dos pais, mas marcou um encontro comigo em 1963 nas touradas de Pamplona, cenário do romance de Hemingway que retrata a "geração perdida", O Sol Também Se Levanta. Continuei sozinho mais alguns meses em Paris, vagando pelas ruas como o escritor Gil no filme de Woody Allen, Meia-noite em Paris.

Quase todo mundo que eu conhecia em Paris na primavera de 1961 estava com o pé na estrada a caminho de Pamplona. Americanos, canadenses, nórdicos, meridionais — aquela fauna estrangeira que se esparrama pelos boulevards e cafés de calçada quando o sol volta a brilhar. Muitos costumavam se reunir num café do Odéon frequentado por espanhóis para ouvir as guitarras, ver a dança flamenca e viver a fiesta por antecipação.

Naquela segunda-feira, 3 de julho, quando os jornais parisienses noticiaram a morte de Hemingway, já deviam estar todos em Pamplona, para a festa das San Fermines. Dois anos depois, morando em Londres, fui até Pamplona para o encontro marcado com Peter J. Solomon. Quando cheguei à pensión designada, ele já havia partido com a noiva, até hoje não soube o que aconteceu. Decidi ficar e aproveitar a fiesta. Comprei uma bota, aquele odre de couro que os espanhóis enchem de vinho barato e esguicham garganta abaixo. Eu errava sempre o alvo e o vinho espalhava-se pelas roupas claras, tinto como sangue. Pelo menos não era o sangue que manchava as roupas dos espanhóis mais afoitos, que corriam pelas ruas estreitas que desembocavam na arena, perseguidos por um tropel de miúras furiosos.

Quando não havia corridas, sentava-me em meio a uma horda internacional no centenário Café Iruña, na Plaza del Castillo, frequentado por Hemingway e cenário da filmagem de O Sol Também Se Levanta (1957). Papa estivera ali pela última vez no verão de 1959 — imaginem, apenas quatro anos antes... Coerente com sua opção ideológica, Hemingway, que lutou na Revolução Espanhola, ficou 14 anos sem pisar na Espanha franquista, só voltando a partir de 1953, por força de sua paixão pelas touradas.

No discurso que mandou para ser lido em Estocolmo quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1954, Hemingway escreveu; "Na melhor das hipóteses, o fato de escrever implica numa vida solitária..." Mas ele não parou de escrever, mesmo minado por uma série de doenças: diabetes, hipertensão, arterioesclerose, obsessão da morte. A escolha final foi consciente. Como escreveu Carlos Baker na sua biografia de Hemingway: "Agarrara-se durante anos à máxima ‘il faut (d’abord) durer.’ Agora ela fora trocada por outra máxima: ‘Il faut (après tout) mourir.’ "

Na obra de Hemingway, Paris é uma cidade mitológica. Pamplona também. As pessoas passam, Paris e Pamplona ficam. No espírito do "Eclesiastes", seu texto favorito da Bíblia, a terra permanece e Hemingway vê as pessoas mais com piedade do que com ironia. Esse sentimento é sintetizado em O Sol Também Se Levanta pelo refrão de Mike Campbell, bêbado no meio da fiesta, comparando o ser humano aos balões (globos iluminados, em espanhol) e aos fogos de artifício que explodem à noite no céu de Pamplona:

" – Globos iluminados – disse Mike.

– Um bando miserável de globos iluminados."

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