• Carregando...
Dedicatória anônima encontrada pela reportagem em uma edição de O Desafio Mundial, de Jean–Jacques Schreiber | Jonathan Campos/Reprodução/Gazeta do Povo
Dedicatória anônima encontrada pela reportagem em uma edição de O Desafio Mundial, de Jean–Jacques Schreiber| Foto: Jonathan Campos/Reprodução/Gazeta do Povo

A escritora amazonense Priscila Lira não esquece a noite em que passeava pelas vias rápidas de Curitiba e os semáforos misteriosamente abriam quando o carro se aproximava. Voltou para Manaus afirmando que nossos semáforos eram mágicos – um amor antigo e encravado por Curitiba. Reprovou ao tentar o Mestrado de Estudos Literários da UFPR e, sentida, vendeu todo o material de estudo, orçado em R$ 500.

"Fiquei frustrada. Gastei muito com livros, hospedagem e passagens aéreas. E ainda tinha de retornar o carregamento a Manaus. Não pensei duas vezes: fui num sebo e vendi tudo por cinquentão". Entretanto, o espírito resoluto desvaneceu no ano seguinte, quando resolveu se inscrever novamente no processo seletivo. "Fiquei com pena de gastar outra fortuna no ‘cara’ que me ofereceu aquela miséria". Emprestou o que podia. Passou. Mora na capital desde fevereiro.

A linguista e professora de Língua Portuguesa Gissele Chapanski também sofre de bipolaridade livresca. "Já vendi alguns livros pela razão mais óbvia: pagar dívidas. Doeu. Mas também fiz isso como voto de confiança no amor. Afinal, quando as pessoas se unem, unem-se as bibliotecas, o que leva a repetições na estante. Comerciar a duplicata em busca do novo acaba sendo uma aposta apaixonada e convicta no ‘para sempre’", alega.

Contudo, há paixões e há inverno. "Vendi, sim, livros por desamor ou vontade funda de deslembrar. Não queria mais os volumes na minha trajetória e precisava que eles continuassem a sua – em terras distantes", completa. O novo horizonte foram os sebos. O livreiro José Roberto Souza Rocha comenta que há inúmeros casos de clientes-vendedores que acabam se reapegando e adquirindo seu próprio estoque. Naturalmente, por um preço superior ao vendido.

Ao contrário dos arrependidos, ele não se sensibiliza a ponto de contrair para si algum item. "Os livros são comprados para serem vendidos, embora as meninas do atendimento sempre fiquem com um por semana...". Entretanto, o seu método não é muito ortodoxo. "Nesta semana apareceu este 365 Piadas – Para Crianças a Partir dos 7 Anos, muito bom. Vou levar aos meus filhos pequenos".

Juscelino Gustavo de Oliveira, livreiro desde 2007, também assina o vaticínio compra-venda. Porém... "Nós adquirimos uma obra rara sobre a Família Matarazzo, linda, chamada In Memorian. Foi distribuída apenas entre os familiares. Taxamos em R$ 1,5 mil. Admito que, se vendermos, vai dar uma dorzinha no coração".

Com açúcar, sem afeto

Sebos reúnem um tipo especialmente comovente: os livros com dedicatórias. Marcos Duarte, livreiro desde 2006, diz ser comum os clientes-vendedores arrancarem as dedicatórias, o que, além do "vandalismo", impede, muitas vezes, o fichamento no sistema através do código de barras.

O livro com dedicatória, quando sobrevive à destruição amadora, passa por fases muito complexas até parar novamente numa prateleira. Ele pode ter sido simplesmente rejeitado, como em A Menopausa – Seus Problemas Físicos e Psicológicos, de Lionel Gendron. Dalva e Altair brindaram a filha e ainda recomendaram: "Leia e aproveite os conselhos do autor".

Há também aqueles simplesmente comuns e que podem ter se perdido entre mudanças, novos donos ou mau julgamento, como a Coleção Para Gostar de Ler: Contos, Vol. 2: "À Camila, para que continue gostando de ler", Cleverton. Entretanto, certos títulos deixam dúvidas profundas sobre seu processo de desapego. Roberta presenteou a amiga com o tocante A Lista de Schindler, de Thomas Kenneally: "Eva, algumas coisas nos falam mais perto ao coração e uma delas é o grande carinho com que você nos acolheu; não esqueceremos e queremos ter a oportunidade de retribuir".

A dupla dedicatória de O Desafio Mundial, de Jean-Jacques Servan-Schreiber, é ainda mais intrigante: "Para Maria José, que gosta de ler: que de Maria tem muito, que de José ‘quase’ nada". Duas páginas depois: "Meu irmão, não li ainda, mas o Tchê já me contou tudo. Vamos ver se podemos dar um jeitinho de melhorar nossas ‘coisas’. Dinho".

Há exemplos ainda mais pitorescos, como as autodedicatórias. Marcos lembra um cliente que sempre fazia fichamento na página 2. "Ele vinha toda semana pra vender dez livros. Descobrimos o padrão." Acontece algo semelhante em Um Girassol na Janela, de Ganymédes José e proprietário não revelado: "O que acontece no final da obra? Ele se apaixona. A empregada e a viuvinha vão morar em Curitiba". O paradoxo do monólogo desconhecido também atinge Leviatã, de Thomas Hobbes: "Quanto + conheço os homens, + gosto do meu gato".

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]