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O Catarinense Sylvio Back jamais escondeu sua paixão pela História do Brasil. Esse fascínio, contudo, nunca se confundiu com reverência pela versão oficial dos fatos, contruída em torno de mitos e movida por interesses ideológicos. Provocativo e inquieto, o diretor comprou brigas, gerou polêmicas e construiu uma filmografia que, se não é unanimidade, é fundamental para quem deseja saber de que forma o cinema nacional tem discutido a trajetória da civilização brasileira em seus mais de cinco séculos de existência.

Por conta dessa inegável relevância da obra do cineasta, a Versátil – em uma parceria com a Apel Multimídia, a TV Cultura e da Fundação Padre Anchieta – está lançando no mercado nacional a caixa de DVDs Cinemateca Sylvio Back, que reúne seis longas-metragens do diretor em três DVDs: no volume 1, a premiada ficção Aleluia Gretchen (1976) e o polêmico Rádio Auriverde (1991); no segundo disco, os documentários A Guerra dos Pelados (1971) e Guerra do Brasil (1987); e, no terceiro disco, Cruz e Souza – Poeta do Desterro(1999) e Yndio do Brasil (1987).

Nazismo

Filme de grande repercussão tanto de público quanto de crítica à época de seu lançamento, em meados da década de 70, Aleluia Gretchen tem como um de seus méritos o resgate da história dos imigrantes europeus no sul do país. Engana-se, entretanto, quem acredita tratar-se de uma visão edulcorada e televisiva da nossa história, aos moldes de um Quatrilho (1995), longa de Fábio Barreto indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Aleluia Gretchen conta a saga dos Kranz, uma família de imigrantes alemães que, fugindo do nazismo, vem se radicar numa cidade do sul do Brasil, por volta de 1937. Às vésperas e durante a Segunda Grande Guerra, membros do clã se envolvem com a Quinta Coluna e o Integralismo, alinhados ao ideário nazi-fascista. Na década de 50, graças a ligações perigosas com o rescaldo da Guerra, os Kranz são visitados por ex-oficiais da SS em trânsito para o Cone Sul.

Back explica, em entrevista ao Caderno G, que, no filme, ressoam lembranças verdadeiras e inventadas da sua família de imigrantes fugidos da Alemanha nazista na década de 30. "Muitas vezes estou nelas quando não pretendia estar e, noutras, me surpreendo lá". Filho de pai judeu húngaro e mãe alemã, Back cresceu em Santa Catarina e no Paraná (as filmagens em 1975 se dividiram entre Curitiba e Blumenau, terra natal do diretor).

"Testemunhei os anos de fogo e brasa da Segunda Guerra Mundial, e do casório Integralismo e Nazismo. Mais tarde, sob o impacto da ditadura militar dos anos 70, me dei conta que aqueles anos de antes e durante a guerra embutiam uma metáfora incandescente da violência tanto institucional quanto pessoal. De como somos trespassados pelo autoritarismo e como ele persiste, repercutindo em nossas ações do cotidiano ao longo dos tempos. ‘Os penteados mudam, mas a cabeça continua a mesma!’, diz um dos personagens de Aleluia, Gretchen", afirma Back.

Polêmica

Quando lançado em Curitiba, no início da década de 90, o documentário Rádio Auriverde gerou enorme repercussão, desencadeando uma onda de protestos de ex-combatentes da Força Expedicionária Brasileira e das Forças Armadas.

Com imagens e sons inéditos de Carmen Miranda e do Brasil na Guerra, o filme penetra no desconhecido universo da guerra psicológica que conturbou a presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália. Através alegres e debochadas transmissões de uma rádio clandestina, tema-tabu entre os pracinhas, o filme acaba também revelando as tragicômicas relações entre os Estados Unidos e o Brasil durante o conflito.

Os pracinhas não gostaram nem um pouco do que viram na tela. Nas palavras de Back, tratase de "um documentário iconoclasta, demolidor, cruel, mas, antes de tudo, comprometido com a verdade e, por isso, até hoje indesmentível, exatamente, pela sua pegada antiutópica e por manter-se ao largo da história oficial".

Unidos no segundo volume da Cinemateca Sylvio Back, A Guerra dos Pelados e Guerra do Brasil abordam conflitos até hoje obscuros para boa parte dos brasileiros. O primeiro, lançado em 1971, é o único registro ficcional sobre a Guerra do Contestado (1912-1916), desconhecida e soterrada pela historiografia oficial, ocorrida no interior do Paraná e de Santa Catarina.

"O filme levanta o véu do primeiro movimento armado pela posse da terra no século 20. Realizado durante a ditadura Médici, muitas vezes havia mais repressão atrás das câmaras, protagonizada por agentes militares infiltrados na figuração, do que à frente delas", conta.

Já Guerra do Brasil, tenta busca um outro viés do conflito deflagrado com o Paraguai no século 19. "Ao ficar eqüidistantetanto da versão do vencedor quanto do vencido, mais uma vez investi num cinema livre de qualquer conotação ideológica para flagrar guerreiros e fatos antes deles serem mitificados. Na tentativa de refrescar a memória amnésica do país, o filme acaba pondo o dedo numa ferida que ainda levará algumas gerações para cicatrizar."

Pesquisado e rodado durante a ditaduraStroessner, a maior dificuldade encontrada no Paraguai foi provar que, em sendo brasileiro, Back queria fazer um filme diatante das paixões nacionais, ainda acesas, dos países envolvidas. "A Guerra do Paraguai continua uma maçaroca histórica do Cone Sul. Cheia de buracos negros, seja para nós, brasileiros, argentinos e uruguaios, seja para os paraguaios", diz o cineasta.

Poesia

No terceiro disco da coleção está, possivelmente, o filme mais radical de Back: Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro, que, apesar do título, não se trata de uma cinebiografia convencional do poeta negro catarinense, vivido pelo já falecido Kadu Carneiro.

O diretor admite que o filme foi uma experiência estética que jamais poderá repetir. "Tanto pela radicalidade de sua linguagem, como pelo transe verbal que foi dar vida à erótica e contundente poesia de Cruz e Sousa", justifica.

O filme é todo falado em versos, interpretado quase exclusivamente por atores negros, e foge de tudo já realizado pelo diretor. "O desafio era como é que um judeu branquela poderia ‘transmutar-se’ em afrodescendente para conseguir capturar a dor moral que é ser preto no Brasil, de ontem e de sempre". A coleção se encerra com o documentário Yndio do Brasil,que, na mesma linha de Revolução de 30 (1980), estabelece um diálogo da história do país com o cinema, mostrando como a sétima arte retratou os habitantes originais do Brasil através dos tempos. Trata-se de uma "cinemateca indígena" reveladora da tensão entre o registro cinematográfico da sociedade branca (idílico, preconceituoso, religioso e militarizado) e o universo físico e mítico das comunidades autóctones.

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