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Outro dia um amigo bem mais jovem perguntou-me quem era Miúcha. Minha primeira reação foi de surpresa e, depois, de certa indignação. Quis indagar a ele em que planeta vivia. O bom senso, no entanto, prevaleceu. Decidi respirar fundo e fazer deste limão uma bela limonada. Quem sabe eu conseguiria até atiçar a curiosidade do rapaz, fazendo com que ele se interessasse por uma geração mais antiga da música brasileira e com ela se deleitar. O caminho mais curto foi apelar para a ilustre família da cantora carioca para despertar sua curiosidade.

"Sabe a Bebel Gilberto, aquela que faz o maior sucesso fora do Brasil? Então, ela é filha de Miúcha. Com o João Gilberto", disparei, de uma só vez.

Nossa, os olhos do moço se iluminaram diante da revelação. A surpresa foi maior ainda quando ele descobriu que a até então desconhecida Miúcha é irmã de Chico Buarque – esse, não há quem não conheça – e Bebel, portanto, chama o compositor e escritor carioca de "titio".

Bem, essa história toda serve como pretexto, ou ponto de partida, para falar do saboroso novo CD de Miúcha, mais um de uma série de bons trabalhos que a cantora vem lançando nos últimos anos. Outros Sonhos é o terceiro álbum da artista pela gravadora Biscoito Fino e é dedicado à música de três bambas: Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes e o mano Chico – que assina a faixa-título do disco e também está presente no mais recente CD do compositor, Carioca.

Cantora de voz ao mesmo tempo rouca e aveludada, perfeita para a bossa nova e derivações, Miúcha não se importa muito em gravar faixas que não sejam inéditas. Até porque tem o dom de recriá-las de maneira muito pessoal, sem apelar para transmutações rocambolescas. Sutil é seu nome do meio.

Repertório

Outros Sonhos conversa tão bem com os dois CDs anteriores de Miúcha, Miucha.Compositores (2001) e Vinicius e Vinicius (2003) que pode ser considerado uma espécie de volume de encerramento de uma trilogia, marcada, sobretudo, pela excelência do repertório e de produção, assinada por José Milton.

O disco inicia-se com a mais recente canção de toda a safra. Trata-se da faixa-título, a já citada "Outros Sonhos", exemplo castiço da afiada veia poética presente no mais recente trabalho de Chico Buarque. A letra, de um humor que belisca a inteligência do ouvinte, também oferece uma ironia muito refinada, imaginando um mundo desprovido de hipocrisias. Repleto de sutis controvérsias, o universo onírico de Chico sugere uma civilização destituída de hipocrisia.

Em seguida, Miúcha vai buscar uma canção pouco conhecida de Tom Jobim, a belíssima "Você Vai Ver", lançada no disco Terra Brasilis (1980). Chico, agora como cantor, se faz presente na música seguinte, um dueto com a irmã na faixa "Chansong", espécie de diário em forma de música de Tom, que descreve, em inglês, seu espirituoso regresso a Nova Iorque, cidade que o consagrou internacionalmente e onde, ironicamente, morreu.

A nostalgia toma conta do disco em "Quando Tu Passas por Mim", clássico de Vinicius de Moraes e Antonio Maria. O interessante é que o arranjo de Leandro Braga evoca o timbre cool dos anos 50, com as presenças de Jessé Sadoc (flugel), Paulo Braga (bateria) e Sergio Barroso (baixo). Saudosismo poucoé bobagem.

Duas parcerias reunidas em uma só faixa explicitam o elo entre a bossa nova e os afro-sambas, de Baden Powell e Vinicius: "Amei Tanto" e "Pra Que Chorar", com arranjo de Cristóvão Bastos, co-autor da faixa que encerra o disco, a tocante "Todo o Sentimento", em parceria com Chico.

Dentre as parcerias de Tom com seu irmão, Miúcha seleciona duas canções compostas na década de 80: as maravilhosas "Eu Te Amo" – com direito a versão em francês – e "Anos Dourados", que valoriza as nuances do canto intimista de Miúcha.

"Olha Maria", por sua vez, meio que sintetiza a homenagem da cantora a seus três heróis poético-musicais: traz as ilustres assinaturas do trio Tom-Chico-Vinicius. Encontro de gigantes.

"Desalento" uma das primeiras colaborações de Chico e Vinicius, do final dos anos 60, ganha versão mais ritmada, com Bastos mais Jorge Helder (baixo), Paulo Braga (bateria), João Lira (violão) e Gordinho (percussão). Ainda de Chico Buarque, estão no disco "Uma Palavra", com arranjo de Leandro Braga, e, finalmente, "Todo Sentimento", onde o piano do co-autor Cristóvão Bastos é o único componente instrumental para um dos momentos mais emocionantes do álbum. GGGG

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