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2006 verá o aniversário de dez anos do lançamento de Infinite Jest, catatau de 1079 páginas com o qual o então trintão David Foster Wallace parece ter mudado muita coisa na literatura americana (por enquanto), na cabeça e nas vidas de uma pá de leitores.

Eu incluso.

A data não vai passar em branco. Vão lançar uma edição especial de um livro que há dez anos tinha tudo para afundar.

Meu tributinho é menor. Fico só com um dos aspectos mais centrais do impacto dessa amalucadíssima estória que envolve viciados em recuperação, prodígios tenísticos e lexicais, incesto, um filme tão bom que mata seus espectadores de prazer, a mulher mais linda de todos os tempos (desfigurada por ácido. Ou não...), um suicídio em forno de micro-ondas, toda uma reorganização geopolítica da América do Norte, assassinos em cadeiras-de-rodas, bandos furiosos de hamsters selvagens e uma estátua da liberdade patrocinada por fraldas geriátricas.

Thomas Pynchon.

É este o nome que uma descrição como essa evoca. E evocou.

E Pynchon (que aliás lança livro novo, depois de dez anos), o grande profeta da pós-modernidade porra-louca e eruditíssima, pode bem ser o nosso ponto de contraste. Pois quem leu seu primeiro romance (V) e depois enfrentou os outros percebe que a opção pelo carnaval, pela interrupção constante da ação por números musicais (!), a escolha de um enciclopedismo que engloba Kierkegaard e o Papa-léguas, Groucho Marx e Aristóteles, tudo isso enformado em romances imensos com centenas de personagens e tramas paralelas parece às vezes sufocar tudo que naquele primeiro romance havia de profunda e dolorosa empatia.

A paranóia tomou as rédeas.

Em certo sentido, quem pode censurar Pynchon por prever Bush?

E além de tudo isso há de ser bom, meu caro e ingênuo amigo. Sentimentalismo é algo que se deve evitar a todo custo na literatura de alto nível! Não...?

Pois nosso conhecido David Foster Wallace declarou acreditar que talvez a verdadeira vanguarda da literatura dos nossos anos esteja na mão daqueles dentre os grandes escritores que não temem o risco da sentimentalidade. Sejamos mais claros, os que não temem a terrível pecha da sinceridade.

Vanguarda, afinal, haverá de ser sempre uma atividade de risco. Mas pouco, quase nada há de efetivamente corajoso na maior parte da produção literária "de ponta". Entre os poucos que lêem e lerão a literatura dita séria, ela é automaticamente aceita. O que não será aceito é o piegas, o sentimentalóide.

Conte. Veja.

Quantas vezes a imprensa elogia um texto por sua "fina ironia"?

Suspeito mesmo que, entre nós, a ironia tenha tomado o lugar da mítica "irreverência". Precisamente por ser mais "fina".

O problema é que, potencialmente, a velha e boa ironia é também uma última defesa contra qualquer fracasso. Contra qualquer exposição. O texto irônico, como seu autor, é inimputável. Como aquela "vanguarda".

De que se pode acusar um autor que nada disse?

E que está disposto a se reconhecer "uma besta ignorante", por exemplo, em um texto elegantemente irônico.

A bendita ironia, que nos deu Machado, Joyce, Swift, hoje vira mero escudo. Nos salva do medo mais terrível da rejeição.

E a que leva essa ironia banguela?

Uma banda paulistana que tira sarro de uma banda curitibana que sacaneia o irreverente funk carioca é resenhada em um jornal paulista por um crítico cool que é citado nas letras da banda paulista como modelo de crítico cool que garante resenhas em jornais paulistas para bandas como aquela banda curitibana que se serve do irreverente funk carioca...

Um humorista que "satiriza" George W. Bush foi recentemente convidado a almoçar na Casa Branca...

Nada mais triste que um iconoclasta legislando.

David Foster Wallace é quase imbatível, entre os escritores atuais, em muita coisa. Inclusive no uso da "fina ironia". Mas talvez ele tenha percebido o começo de seu fim.

Agora sua piada infinita completa dez anos.

Um livro profundamente irônico e ao mesmo tempo cheio de uma sinceridade tremenda na exposição do que não se pode chamar de outra coisa além de tristeza na sociedade americana atual, na dependência que ela tem de estímulos constantes e novos (drogas, álcool, cinema... todos tema do livro), no vazio barulhento, doloroso e profundamente irônico da condição (pós-)moderna.

Caetano Waldrigues Galindo é professor de Lingüística Histórica na Universidade Federal do Paraná e tradutor.

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