
O engenho de J.M. Coetzee ao manusear fato e ficção, misturando-os até que se transformem numa massa uniforme na qual é impossível discerni-los, é uma das características mais surpreendentes de Verão, que a Companhia das Letras lança na última semana deste mês.
Embora possa ser lido de forma independente, o novo romance do autor sul-africano faz parte de uma trilogia, Cenas da Vida na Província, formada por Infância (relançado há poucos dias, no formato de bolso) e Juventude.
Nos dois primeiros volumes da tríade, Coetzee (as iniciais são para John Maxwell) usou a terceira pessoa para falar de si mesmo, narrando eventos que marcaram os primeiros momentos de sua vida ao lado dos pais e do interesse na literatura a leitura de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, aos 9 anos, foi transformadora , e os anos de descobertas como estudante de Matemática e, mais tarde, como um funcionário insatisfeito da IBM.
O pacto proposto por Verão é o ficcional. Nada do que está escrito ali é verdade, ou melhor, é verdade apenas no mundo da ficção (uma frase ótima que aparece na página de dados catalográficos de alguns livros). A ideia do pacto parece mais relevante nos dias atuais, talvez porque são muitos os autores que partem de experiências pessoais para escrever, ou porque usam várias referências que fincam as invenções no mundo de fato. No fundo, todo texto que reconstrói um acontecimento é uma ficção, mas a discussão não é tão simples assim.
A narrativa abre com fragmentos de um diário escrito por Coetzee entre 1972 e 75, época que marcou o seu retorno dos Estados Unidos para a África do Sul em pleno apartheid, e fecha com outros não datados. O escritor está morto e esses trechos fazem parte de um material a ser usado pelo acadêmico britânico Vincent, que planeja escrever uma biografia do respeitado autor de À Espera dos Bárbaros.
Entre um extremo e outro, se acompanha as peripécias de Vincent em entrevistas com pessoas que conviveram com Coetzee. São cinco entrevistados. À exceção do homem, Martin, um professor colega de trabalho, as quatro mulheres viveram histórias amorosas com o biografado.
A edição brasileira do livro assim como a americana abriu mão de parte do jogo proposto pelo romancista. O volume publicado pela Harvill Secker, de Londres, traz na orelha uma foto antiga do autor, aos 30 e poucos anos (hoje ele tem 60) exatamente o período descrito nos diários. A capa mostra a imagem de uma estrada de chão numa paisagem árida e, nela, há uma caminhonete branca e detonada. A fotografia também está vinculada à história.
No texto, a musicalidade das frases tem um efeito tremendo sobre a leitura é sempre fascinante seguir a lógica de Coetzee. A certa altura, ele escreve sobre o quanto a sociedade desdenha o conhecimento e a conclusão a que chega é revoltante. Mas o desdém é relativo porque o escritor foi valorizado, por exemplo, pelo Prêmio Nobel de Literatura em 2003.
Se for encarado como um romance autobiográfico já que faz parte de uma trilogia memorialística , Verão ganha nuances ainda mais instigantes pelo fato de que Coetzee é implacável ao falar de si mesmo. Os entrevistados mencionam qualidades, mas não hesitam em comentar o quanto ele é inadequado para se relacionar com uma mulher, arrogante com a família, ou simplesmente esquisito.
Na relação com a imprensa, Coetzee resiste a falar da própria obra e sob circunstância nenhuma comenta sua vida íntima. Talvez para não disperdiçar potenciais temas para livros. Não por acaso, o personagem de Verão é um homem de ambições literárias capaz de se orgulhar com a publicação de um romance. Ao longo da narrativa, há ainda inúmeras opiniões sutis, mas importantes sobre o que é ficção.
Uma delas aparece quando a vizinha Julia se desculpa para o biógrafo por inventar diálogos inteiros ocorridos décadas antes, mas argumenta que seu relato é fiel à essência do que aconteceu no passado e que isso (inventar) não deve ser um problema porque, afinal, ela está falando de um escritor.
Nos romances, a ficção dá acesso a uma verdade essencial ligada à vida e a tudo o que ela implica que jamais seria tangível de outra forma. E isso é ainda mais evidente ao ler um livro de Coetzee. GGGG
Serviço
Verão, de J.M. Coetzee. Companhia das Letras, 280 págs., R$ 44,50.




