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Décio Pignatari: Alice no País das Maravilhas sempre no horizonte | Marcelo Elias/ Gazeta do Povo
Décio Pignatari: Alice no País das Maravilhas sempre no horizonte| Foto: Marcelo Elias/ Gazeta do Povo

Bili com Limão Verde na Mão é um livro de criança para ser lido por adultos. Nada de estranho com a definição dada pelo poeta Décio Pignatari para o próprio trabalho. Quase sempre, são mesmo os adultos que leem para as crianças.

Um dos nomes fortes do concretismo no Brasil, o escritor partiu das ideias defendidas pelo movimento de vanguarda a partir dos anos 1950 para escrever "um conto sem enredo", diminuindo a distância entre o conteúdo do que é narrado e a forma usada para narrá-lo. "Eu não queria contar uma ‘historinha’", diz Pignatari.

Sua intenção, explica, era "fazer a concretude do texto escrito". Chamar a atenção para a palavra e para o significado que ela carrega. É assim que, numa das páginas, quando Bili é fulminada por um ataque de vespas, a ilustração de Daniel Bueno mostra pequenas setas pretas (como vespas) descendo em diagonal e deixando um rastro vermelho encimado por frases que, sozinhas, seriam capazes de descrever o pavor da menina: "vespa... as as asas as as asas" e "vespa... andorinha andor andorinha andor dor dor dordordor".

Os trechos poderiam ter saído de um poema concreto e funcionam incrivelmente em um livro ilustrado sobre as angústias pré-adolescentes.

"Eu queria usar a tipografia na história, fazer uma narrativa que estivesse colada nas palavras", explica Pignatari, com uma fala tranquila, embalada por um quinteto de cordas de Mozart que tocava na sala de seu apartamento, a poucos metros do Museu Oscar Niemeyer, quando recebeu a reportagem da Gazeta do Povo. Uma sala toda decorada com quadros (dele, feitos com têmpera a ovo, e de amigos), estantes de livros e muitos móveis de madeira.

A despeito da pronúncia anglicizada que o nome da personagem pode sugerir, Bili não tem o mesmo som de Billy e é um diminutivo de Belisa. Pignatari começou a trabalhar na história nos anos 1960, quando um amigo fundou uma editora e encomendou um livro infantil.

Terminou a primeira versão e a entregou ao amigo, que detestou o resultado. Como Pignatari não estava disposto a fazer alterações, engavetou os originais e os esqueceu por algumas décadas.

Nos anos 1990, depois de publicar contos no suplemento infantil de um diário paulistano, acabou em contato com a Cosac Naify por meio de uma amiga jornalista. A editora ficou interessada em Bili com Limão Verde na Mão que, àquela altura, já havia sido retrabalhada várias vezes, ficando mais e mais complexa.

Cansado de mexer na história, ele largou mão dela, entregou o manuscrito e deixou que os editores decidissem o que fazer. Neste ano, a notícia da publicação veio mais de dez anos depois daquele primeiro contato e surpreendeu o autor.

Com Alice no País das Maravilhas "sempre no horizonte", Pignatari queria falar sobre as transformações que os jovens experimentam na fase da puberdade. No clássico de Lewis Carroll (1832-1898), a aventura acontece sem que a protagonista possa fazer qualquer coisa a respeito – sua saga começa quando ela pega no sono.

Apesar de também ter um sonho surreal, Bili, ao contrário de Alice, é responsável pelas coisas que acontecem ao longo da narrativa. Ela encontra um limão e reage à frustração que sente arremessando-o contra meio mundo. "Por tudo aquilo que eu sei e que eu não sei, com quase treze anos, a minha vida não está legal", diz Bili no início do livro.

Além de Carroll, outra influência admitida pelo escritor é James Joyce (1882-1941). Quantas vezes você viu um livro para crianças usar o fluxo de consciência? Aquele recurso que Joyce dominava como poucos em que o texto não segue regras gramaticais e pede para ser lido na velocidade do raciocínio. Por causa dele, dá para imaginar os leitores jovens perplexos diante das primeiras páginas de Bili com Limão Verde na Mão.

Pignatari, de 81 anos, é pai de três e avô de dois. Seus netos têm 6 e 4 anos de idade. Ele imagina que o público de Bili tenha pelo menos 11 anos e um pouco de "vivência no universo cinematográfico". O que deve ajudar na percepção dos jogos e comentários que o texto faz sobre o projeto gráfico e vice-versa.

Palavras engraçadas (cocoruto, fula, tropicar), outras inesperadas ("demansinho", "penadelamesminha") e frases musicais ("Um sono gostoso veio vindo e ela dormiu de comprido na grama") querem, por fim, mostrar o prazer da linguagem escrita, "a primeira coisa que tem que acontecer no livro".

Serviço

Bili com Limão Verde na Mão, de Décio Pignatari, com ilustrações de Daniel Bueno. Cosac Naify, 80 págs., R$ 49.

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