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Heroínas sexualizadas nos quadrinhos

Anna Simas

Se na contemporaneidade a mulher tem alçado posições de destaque na produção de HQs, em anos não tão distantes seu papel foi outro, algumas vezes bastante desconfortável. Especialmente na produção norte-americana da década de 1930, a chamada "era de ouro dos quadrinhos" (que seguiu até os anos 1950), a figura feminina foi alvo da imaginação libidinosa dos ilustradores, principalmente as heroínas.

Sexualizadas ao extremo (reflexo do cenário machista da época), os traços das personagens realçavam as formas – seios grandes, cintura fina e quadril largo. Nos quadrinhos de heróis, eram apenas dois os papéis: ou faziam as protagonistas – e aí não escapavam de trajes justíssimos, curtos e decotados e cenas de luta com poses eróticas – ou as coadjuvantes. Nestes casos, eram as moças frágeis, culpadas por colocar os mocinhos em perigo e, claro, não menos sexys.

Mas esse padrão na produção americana foi intermitente. Símbolo disso é a Mulher Maravilha. Criada na década de 1940, surgiu com o propósito de atrair leitoras para as HQs e dar conta de uma demanda até então ignorada pelas grandes editoras. As curvas eram discretas, a roupa um pouco maior. Não deu certo. O público consumidor continuava, em grande parte, masculino, e aí foi preciso caprichar na sensualidade.

Entretanto, a inferiorização da figura feminina e a construção da sua identidade como um objeto de consumo não permeou todo o universo de quadrinhos ao redor do mundo. Nos europeus, por exemplo, eram muitos os autores que exploravam os aspectos sociais, intelectuais e culturais das personagens, em um patamar de igualdade com a figura masculina. Na América Latina apareceram as personagens politizadas, como a Mafalda, e as infantis, como a Mônica. A intenção era outra e a mensagem também.

Quando elas produzem

Não é por acaso que a maioria – com pequenas exceções – das personagens sexualizadas foram desenhadas por homens. Mesmo hoje, com mais mulheres com o nanquim na mão, a proporção permanece. Rodrigo Scama, coordenador da pós-graduação em Quadrinhos da Faculdade Opet, aponta que as quadrinistas fogem do estereótipo das heroínas americanas. "Muitas não gostam nem de consumir esse tipo de quadrinho. É raro mulher que sexualiza mulher", diz.

Contrariando a regra, a cartunista curitibana Pryscila Vieira criou a Amely, personagem publicada no jornal Folha de S. Paulo. Mesmo que com uma pegada irônica e incitadora da discussão de gênero, ela escolheu para representar as mulheres uma boneca inflável, símbolo do sexismo machista.

Mas dizer que ilustradoras e cartunistas fogem da sexualização feminina não significa que o erotismo não apareça em suas produções. Pelo contrário. O HQ francês Azul É A Cor Mais Quente , da autora Julie Maroh, que conta a história da relação homossexual entre duas garotas, é um caso típico. Mas este, como outros, tratam-se de uma opção por um gênero de HQ, que não necessariamente coloca a mulher em posição inferior a do homem.

Protesto

A mudança não só no perfil de quem faz mas de quem consome HQs gera também um certo policiamento da produção, não apenas por parte das mulheres. Em meados de agosto deste ano, a Marvel lançou uma nova Mulher Aranha. Na capa, a heroína aparecia em posição erótica, agachada e com roupa extremamente colada. O resultado não poderia ser diferente, pois o responsável pelo desenho foi o ilustrador especializado em quadrinhos eróticos Milo Manara. Em poucos dias surgiram protestos nas redes sociais. Resultado: um pedido de desculpas da editora e o cancelamento de outras duas capas feitas pelo artista, uma de uma edição de X-Men e outra de Thor. Fontes: outras pessoas consultadas para a matéria foram os quadrinistas José Aguiar, Walkir Fernandes e Ibraim Roberson, também responsável pela Club Comics.

As datas podem não ser fundamentais, mas dizem muito. A primeira publicação dirigida por mulheres se chamava o Jornal das Senhoras, criada em 1º de janeiro de 1852. Fundado pela jornalista Joanna Paula Manso de Noronha, o periódico durou quatro anos e abria de espaços para colunismo social às sessões de literatura. Segue trecho do primeiro editorial: "[...] nem temais dar expansão ao vosso pensamento; se o possuis é porque é dom da Divindade e aquilo que Deus dá, os homens não podem roubar".

Não somente por questões históricas, o 1.º Encontro Lady Comics – Transgredindo a representação feminina nos quadrinhos –, que acontece hoje, em Belo Horizonte (MG), é importante por ser a primeira reunião de mulheres quadrinistas do Brasil e se propor a debater o seu espaço (crescente) no mercado editorial. "A ficha caiu nas grandes editoras. Estão se preocupando em publicar histórias feitas por nós porque precisam atender ao número crescente de leitoras", afirma Samanta Coan, uma das quatro idealizadoras da Lady Comics.

O evento é realizado pela plataforma de financiamento coletivo Catarse e pretende reunir mais de 250 pessoas no Centro Universitário UNA. Ao todo são 15 convidados, que variam entre quadrinistas e pesquisadores do segmento. "Queremos mostrar que há diversas possibilidades de produção às mulheres. Se associa os quadrinhos feitos por nós com histórias fofas, sobre beleza, maquiagem, amor… Pode ter também, mas há produções em outras áreas. Há artistas fazendo de quadrinhos de terror, como Camila Torrano e Bianca Pinheiro, a humor, como a Chiquinha", alega Samanta.

As quadrinistas reclamam constantemente da representação da mulher nas HQs. Para a quadrinista curitibana Simone Hembecker, que em novembro lança Nabucomics, muitas HQs colocam mulheres em condições anatomicamente impossíveis e valorizam outros "atributos". "Nunca consegui entender essa história de heroínas lutando de saia, salto alto e cabelo solto... Talvez o ‘super decote’ seja um truque para distrair o oponente e ter uma vantagem em combate: é a única explicação plausível", alfineta.

Uma história de exclusões

Considerar as histórias em quadrinhos como um campo literário, ao plano de romances, novelas (não as televisivas) e contos, é, antes de tudo, estudar afinidades políticas – e fazemos política até para levantar da cama – e estabelecer relações de gênero: por que o cânone literário tem tão poucas mulheres? Por que os altos cargos das editoras são, em sua maioria, ocupados por homens? Quantos impressos brasileiros de literatura constam com mulheres como publishers? Quantos livros falam sobre mulheres sem que necessariamente elas não falem sobre (ou da falta de) homens?

Sem apelar à dicotomia homem x mulher e à ótica do radicalismo, desde a morte da feminista francesa Olympe de Gouges, guilhotinada em 1793 por exigir "absurdos" como uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em contrapartida à estreita Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – isso de homem significar o neutro e o universal, enquanto à mulher sobra a função da margem –, diversas correntes feministas pensaram o papel da mulher na sociedade e em suas esferas de micro e macropoder. A literatura como campo de ação e afirmação.

Virginia Woolf alegava que, primordialmente, a mulher escritora precisa de um escritório. Alice Walker intuía que não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio. Quando os anos 1960 emergiram, muitos movimentos ferrenhos na luta por direitos, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, principalmente na França, buscaram redefinir o ideal de mulher em sociedade, com inúmeros avanços. A América Latina viu aportar uma nova série de conceitos mais igualitários, embora, uma pecha tenha se alastrado: a recusa do termo feminista. Uma mulher que não ouviu de outra mulher que ela não é feminista, mas sim feminina, é tão difícil de encontrar quanto um homem que reconheça que as mulheres precisam trabalhar mais para conseguir as mesmas benesses que ele – a velha cultura dos privilégios.

Até mesmo para mulheres que se afirmaram no cânone literário, como Zélia Gattai – mais reconhecida como a esposa de Jorge Amado... –, as coisas não foram fáceis. Em Histórias das Mulheres no Brasil, organização de Mary Del Priore, Zélia conta que depois de escrever Anarquistas Graças a Deus (1982), pensava no que diria sua mãe ao ler o livro: "Que menina atrevida! O que não vão dizer!".

Não é possível, num recorte fechado, avaliar as disparidades do mercado editorial brasileiro e dizer que o feminismo é uma mera ideologia totalizante – as presentes campanhas políticas e aumento dos índices de votos brancos e nulos são uma prova cabal do descrédito das ideologias. Um viés de entendimento pode ser conferido ao estender o velho Teste de Bechdel à literatura e, por consequência, ao universo das HQs: quantos livros você consegue citar em um minuto que tenha no mínimo duas mulheres, e com nomes, as mulheres conversem muito uma com a outra e falem sobre alguma coisa que não seja um homem?

O quê elas querem?

Duas lógicas justificam a ausência de mulheres no topo literário. Primeiramente, a lógica corporativista. Nós, homens sempre validamos o que nós, homens, produzimos, relegando as mulheres a outros campos menos "nobres" – a ética da sujeira de Bauman: tudo aquilo que é considerado indigno, como lavar louça, catar lixo e limpar a casa, é realizado, na sociedade, geralmente por quem ou é pobre ou é mulher. Ou as duas coisas.

A segunda lógica opera num chão ainda mais complexo, da arqueologia literária, da falta de resgate do que escreveram mulheres ao longo dos tempos. Se você é um aficionado por quadrinhos, que nome de mulher lhe ocorre que tenha sido publicada para trás da década de 1960 e esteja em permanente reedição?

Há também uma outra questão, que se sobressalta. Quando as mulheres vencem o campo de força do mercado, pede-se que tenham uma voz feminina, como se suas esferas de subjetividade fossem enquadradas e direcionadas para tratar de assuntos que lhe "caibam", como delicadeza e sensibilidade – nesse aspecto, obras contemporâneas, como de Ana Paula Maia e Carol Bensimon, discutem muito bem isso. [Porque a onda de cronistas jovens que escrevem sobre amor romântico é bem difícil de analisar para fora dos velhos arquétipos das doçuras e amenidades.]

Outra situação paralela (e recorrente) é da apropriação que nós, homens, fazemos do universo feminino, quando julgamo-nos capazes de dizer o que pensam elas. "Um homem jamais pode entender o tipo de solidão que uma mulher experimenta", dizia Anaïs Nin, referindo-se à necessidade das mulheres falarem por elas mesmas, não a realidade de homens enquadrando-as em suas verdades, o popular feministo.

Campanhas como #ReadWoman 2014, idealizada pela escritora britânica Joanna Walsh, explicita que o mundo contemporâneo, que se arroga pós-moderno e para fora das trevas, ainda carece de muitos capítulos para chegar à uma igualdade de condições básica, mesmo que as mulheres leiam mais do que os homens e se engajem com mais afinco no processo de incentivo familiar à leitura.

Recentemente, a escritora Martha Lopes, uma das idealizadoras do KDMulheres, coletivo que questiona a visibilidade das mulheres nas artes, especialmente na literatura, disse algo que de tão óbvio chega a soar como inacreditável: "Elas publicam livros na mesma medida que eles, mas seguem recebendo menos destaque na imprensa, em premiações e eventos literários. Alguns números dão conta do cenário: o prêmio Nobel de Literatura, por exemplo, existe desde 1901, mas só foi destinado a 12 mulheres em sua história; a Academia Brasileira de Letras tem 40 membros, só 5 mulheres." Ela ainda relembra que a Festa Literária de Paraty (Flip), de 2014, o maior importante evento literário do país, teve, entre os 44 autores convidados, somente 7 mulheres – em doze edições do evento, somente uma homenageou uma mulher.

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