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Por ser uma comédia de Lars von Trier, o humor é negro e mais refinado | Divulgação/IFC Films
Por ser uma comédia de Lars von Trier, o humor é negro e mais refinado| Foto: Divulgação/IFC Films

Lars von Trier é um cineasta genial, cuja vida pessoal é um tanto conturbada. Em 1995, sua mãe, no leito de morte, confessou que o pai dele era outro. Um ano depois, o diretor dinamarquês largou a mulher grávida para casar-se com sua jovem babysitter. Há poucos anos, ele declarou que sentia ciúmes de seus atores (e atrizes), pois durante as filmagens eles se reuniam, riam, conversavam e ele sempre ficava de fora. Sua posição de comando o impedia de lograr uma aproximação e, conseqüentemente, de obter calor humano. Cansado desta história, ele resolveu exorcizar seus demônios interiores em "O grande chefe", que chega aos cinemas de São Paulo este fim de semana e aos do Rio na semana que vem, "comédia de escritório" que conta de forma bem-humorada e inteligente como ele se sente em relação a sua fraqueza. E, ao mesmo tempo, passando sua opinião - nada favorável - em relação ao trato com os atores. E como eles (e elas) podem enlouquecer facilmente seu "chefe".

O dono de uma empresa (seu alter-ego e personagem-título) inventa um "grande chefe" fictício enquanto assume a posição de gerente para se proteger das insatisfações de seus sócios e funcionários, e de suas reações provenientes de medidas impopulares por ele tomadas. Ele decide vender a empresa para um islandês, que exige que o negócio seja feito pessoalmente. "O grande chefe" precisa, então, dar vida a seu personagem e, para isto, contrata um ator para o cargo. No entanto, a negociação se complica, fazendo com que o ator tenha que desempenhar seu papel por mais tempo. Isto permite que ele tenha contato com os outros sócios, abrindo possibilidade para que as coisas não saiam como o previsto.

A história é, na verdade, bem triste, se analisada de um ponto de vista pragmático. No entanto, é, sim, uma comédia, e muito engraçada. Claro que, por ser uma comédia de Lars von Trier, o humor é negro e mais refinado, fugindo do rasteiro. E, fiel ao seu estilo e à sua origem nórdica, faz um filme no qual as gargalhadas nem sempre vêm fáceis. Como nas ótimas séries de TV, "Seinfeld" e "The office" (comparações serão inevitáveis), o riso muitas vezes vem acompanhado de uma certa dose de desconforto, além de ser dependente de boas atuações e de diálogos espertos.

Pioneiro na utilização da câmera digital em longas-metragens, desta vez ele utilizou, na captação das imagens, uma inovação na qual os movimentos e os ângulos de câmera são selecionados por computador. Além disto, Lars von Trier ressuscita a obra de Godard e uma de suas assinaturas, o jump cut. Ele abusa deste recurso de linguagem, talvez, com o objetivo de mais uma vez desconstruir a linguagem cinematográfica, o que já havia realizado em "Dogville" (2003), "Manderlay" (2005) e "Dançando no escuro" (2000), no qual procurou desconstruir os musicais, sempre com seu olhar crítico (e cínico) por trás. Lars von Trier se celebrizou por fazer filmes fortes, polêmicos e conduzidos por atrizes. Com algumas inserções metalingüísticas protagonizadas por seu diretor e roteirista, em "O grande chefe", aparentemente, ele se cansou - pelo menos por enquanto - de filmes contundentes e atrizes protagonistas. Não por acaso, aqui os dois protagonistas são homens, e ele informa no início da película que o filme não será para fazer a cabeça de ninguém, e que nele não existirá sermão.

Há apenas sua visão sobre a (sua) solidão e sobre os atores (ou atrizes) - pessoas fúteis, difíceis e indignas de confiança, segundo ele -, e sobre como é difícil contornar vaidades em prol de um bem comum maior. Parece que ele ficou tão desgostoso com seus intérpretes (Björk declarou que queria matá-lo, e Nicole Kidman se recusou a participar de "Manderlay", continuação de "Dogville"), e com suas carências, que resolveu curar seus males de forma divertida e engraçada, mas cujo subtexto quer dizer bem mais do que aparenta. E é nas entrelinhas que ele faz seu estudo e suas considerações acerca da arte, da solidão, da interpretação, das grandes corporações e, fundamentalmente, das relações humanas. Ele ainda cutuca o Dogma 95 (movimento que ajudou a criar com "Os idiotas", de 1998) e o povo dinamarquês, afirmando serem seus conterrâneos melodramáticos, piegas e sentimentais. Um mea culpa em celulóide que muitos dirão tratar-se de uma "obra menor". Não dê ouvidos.

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