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10 minutos

É uma estimativa do tempo que você precisa para ler este texto do início ao fim.

Tim Parks

O britânico de 60 anos é professor de Literatura e Tradução na Universidade de Comunicação e Línguas (IULM) de Milão, na Itália, e autor dos livros Meus Vizinhos Italianos e Uma Educação à Italiana, ambos publicados no Brasil pela Publifolha. Ele mantém um blog sobre livros e leitura, com textos em inglês, dentro da New York Review of Books: www.nybooks.com/blogs/nyrblog/

NYRB

A revista The New York Review of Books, ou simplesmente a "Review", surgiu em 1963 durante uma greve dos gráficos em Nova York, que deixou vários jornais fora de circulação. O editor Jason Epstein viu na greve uma oportunidade de ganhar dinheiro com os anúncios das editoras que continuavam a publicar livros e não tinham onde divulgar os lançamentos. Barbara, a mulher de Jason, e Bob Silvers eram os editores da revista que se tornou referência de coragem (por dizer verdades que ninguém mais dizia) na imprensa dos Estados Unidos e do mundo.

"Francamente, não ligo para o que as pessoas andam lendo, se é Crepúsculo, Harry Potter, sei lá o quê, não importa. Pelo menos há uma chance de que um dia elas acabem lendo alguma coisa melhor."

Quantas vezes você ouviu alguém expressar uma opinião assim? Nesse caso, quem deu essa declaração foi um crítico literário para uma estação de rádio canadense, com quem eu estava discutindo um texto recente do meu blog, "O esforço para a leitura" [publicado pela Gazeta do Povo no sábado passado]. Desnecessário dizer, esse sentimento costuma vir acompanhado de um lamento porque as pessoas leem cada vez menos atualmente, com a noção de que há uma hierarquia da escrita com tipos como Joyce e Nabokov no topo e Cinquenta Tons de Cinza no fundo. Entre os dois, presume-se que haja um tipo de escada neoplatônica, de modo que, começando na base, é possível passar por vários degraus até chegar ao topo, como uma inversão otimista de quando se lamenta que a pornografia leve pode levar à pornografia pesada, ou que a maconha acabe destinando quem a fuma a cair na cocaína, no crack e na heroína. Ou seja, o usuário é sempre atraído a uma forma mais intensa de uma mesma espécie de experiência.

Enquanto o medo de que alguém vai começar a usar drogas pesadas começando com as leves costuma ser tratado como uma quase certeza, a esperança de que alguém possa subir de Hermione Granger [criada por J. K. Rowling na série Harry Potter] para Clarissa Dalloway [personagem de Virginia Woolf em Mrs. Dalloway] é geralmente expressa como não mais que um desejo. Em todo caso, serve para justificar o que diz o intelectual: "Francamente, não ligo para o que as pessoas andam lendo, etc." (como se estivesse fazendo um grande favor com isso), e sublinhar o nosso otimismo cauteloso quando nosso filho ou filha adolescente se vicia em George R. R. Martin [das Crônicas de Gelo e Fogo]. Não é nenhum Dostoiévski que ele está lendo, mas um dia poderá vir a ser, e, de qualquer modo, é melhor do que tevê ou um jogo no computador, já que essas coisas não fazem parte da escada da leitura.

Existe qualquer fundo de realidade nisso tudo? As pessoas passam, de fato, de Cinquenta Tons de Cinza para Alice Munro? Quantos são os estágios intermediários? Tem volta? E, se não for verdade, por que é que um certo tipo de intelectual continua a expressar essas opiniões? E para quê?

Em 1948, o poeta W. H. Auden publicou um ensaio chamado "O Vicariato Culpado: Notas Sobre a História Policial, por um Viciado", sobre aquilo que ele chama de seu "vício" em romances de detetive. O ponto a que ele quer chegar é que essas narrativas esquemáticas servem às necessidades escapistas dos leitores que partilham de sua constituição psicológica particular. Essas pessoas, como diz Auden, em sua elaborada argumentação, não serão os mesmos leitores que os de romances água-com-açúcar ou de suspense ou de ficção de fantasia. Cada gênero tem seu apelo para tipos distintos de mentalidades. Em todo caso, para Auden, sempre que ele precisava dar conta de algum trabalho sério, era crucial que não tivesse nenhum romance de detetive por perto, visto que ele não conseguia não pegar um para folhear, e, se pegasse, ele não iria largá-lo até que chegasse ao fim. Ou, pelo menos, nenhum romance de detetive que ele ainda não tivesse lido, já que Auden nota essa diferença entre o que é literatura e aquilo que compõe seu vício: o romance de detetive ele lê e já esquece, jamais convidando à leitura uma segunda vez, como se faz com a literatura. As implicações são bastante claras. Auden nega que haja qualquer continuidade entre os romances literários e os romances de gênero, ou até mesmo entre os diferentes gêneros. Não se passa do mais baixo para o mais elevado. Pelo contrário, é perfeitamente possível cair do mais elevado para o mais baixo, ou então ler os dois, já que muitas pessoas costumam comer tanto boa comida quanto junk food, com o único problema sendo que esta pode viciar: ao repetir constantemente a mesma fórmula gratificante (o teste definitivo da ficção de gênero), ela estimula e satisfaz um desejo por uma mesmice infinita, até o ponto em que o leitor pode muito bem acabar passando todo o tempo que tem disponível para leitura exatamente com o mesmo material (minha própria experiência com isso foi um período em que passei lendo os romances de Georges Simenon [criador do detetive Maigret]... depois de cinco ou seis fica cada vez mais difícil distinguir um do outro, mas o leitor não consegue parar).

Note-se que Auden não propõe que se pare de ler romances de detetive – ele continua gostando do gênero –, nem lamenta em nada que as pessoas leiam esse tipo de romance em vez de, digamos, Faulkner ou Charlotte Brontë. Tampouco deseja que as pessoas usem os romances de detetive como um degrau para chegar a "coisas mais elevadas". Ele só comenta que precisa se esforçar para controlar o vício, talvez porque não quer permanecer preso a um padrão repetitivo de experiência que não permite qualquer crescimento e que não o leva a lugar nenhum. Seu ensaio, aliás, tem todos os aspectos do raciocínio de alguém que está determinado a explicar para si mesmo por que não deve perder muito tempo com romances de detetive e, ao mesmo tempo, se perdoar pelo tempo passado com eles. O que a ficção de gênero pode acabar fazendo, então, é evitar o engajamento com a ficção literária, em vez do contrário, em parte por causa do tempo que ocupa, mas, num nível mais sutil, porque o literário é, de sua própria natureza, experimental e potencialmente perturbador, enquanto o romance de gênero encoraja o leitor a permanecer numa zona de conforto.

Aqui, sou forçado a dar uma pausa para admitir o argumento de que muito da suposta ficção literária também repete fórmulas cansadas, enquanto alguns romances vendidos como de gênero seguem na vida da experimentação ao negar aos leitores a mesmice que o formato os leva a esperar. E é claro que muitos autores literários fizeram sucesso "subvertendo" formas de gênero. Porém, sobrevive ainda o clichê do "Eu não ligo se as pessoas leem Crepúsculo porque pode levar a coisas melhores", e, se isso ocorre, é porque, apesar de todos os esforços para borrar as fronteiras que temos visto recentemente, ainda não temos nenhuma dificuldade para distinguir a diferença entre a fórmula repetitiva que oferece prazer fácil e o esforço mais vigoroso de se engajar com o mundo de novas maneiras.

Então, será que acontece de as pessoas subirem da ficção de gênero para a literária nessa escada neoplatônica? Elas começam descobrindo Stieg Larsson e depois prosseguem e passam para Pamuk? Sem nenhum estudo ou estatística disponíveis para dar cabo da questão – pelo menos, não que eu conheça –, só posso recorrer a relatos anedóticos, como pai de três filhos e professor universitário há muitos anos. E a primeira coisa que tenho para dizer é que nunca ninguém jamais disse ter feito essa progressão. Meus filhos todos gostavam que lêssemos para eles o cânone clássico dos livros infantis quando eram crianças, mas isso não levou automaticamente à "leitura séria" mais tarde, apesar – ou talvez por causa – de terem seus pais com hábitos de leitura bem desenvolvidos. Meu filho passou a adolescência saltando entre jogos de computador e releituras compulsivas de O Senhor dos Anéis, igualmente feliz com ambas as formas de entretenimento. Mais tarde, ele reuniu as coleções completas de Jo Nesbø e Henning Mankell. Quando sugeri que experimentasse as obras de certos romancistas de quem gosto – Coetzee, Moravia –, ele reclamou que eram perturbadores e reais demais. Minha filha mais velha oscila entre romances baratos e ficção literária com a maior facilidade e tem perfeita consciência dos prazeres diferentes que eles oferecem. Minha filha mais nova corre atrás de vastas sagas de fantasia e parece estar inteiramente satisfeita com elas; nenhum desses livros jamais a levou a considerar a possibilidade de abrir qualquer uma das obras mais literárias empilhadas nas nossas prateleiras. Na verdade, ela lê fantasia porque não temos esses livros nas estantes da família e porque oferecem uma experiência distinta em relação à ficção literária. Ela não quer se incomodar, diz, com os tipos de realidades de que ela já vê o suficiente. Ela gosta do mundo fantasioso de aventuras ousadas e dons especiais.

Quando falo com meus alunos, o que é mais chocante é que a maioria deles, contente com uma dieta exclusiva de ficção de gênero, simplesmente não percebe qualquer diferença categórica entre essas obras e as literárias; eles não veem a essência conservadora do caráter de uma e o caráter experimental da outra. Não sentem qualquer necessidade de ampliar suas experiências de leitura. Muitas vezes propõem teses sobre obras genéricas desprovidas de qualquer distinção, incapazes de compreender porque os professores as inserem numa categoria distinta da obra de, digamos, Doris Lessing ou D. H. Lawrence.

Se presumirmos, pelo bem da discussão – e na ausência de informações persuasivas do contrário –, que as narrativas não formam um contínuo de modo que seja natural um leitor ser guiado de uma forma mais simples para as mais complexas, mas que, em vez disso, elas oferecem experiências bastante distintas que se combinam com as mentes dos leitores e suas exigências de modos também bastante distintos, então por que os intelectuais bem-intencionados continuam a insistir nessa ideia, chegando a encorajar os filhos para que leiam qualquer coisa e não nada, como se o mero ato de leitura em si já fosse uma virtude?

É evidente que as editoras têm um interesse comercial na noção reconfortante de que qualquer leitura já é melhor do que leitura nenhuma. Elas podem se sentir virtuosas ao venderem cem milhões de cópias de Cinquenta Tons de Cinza, seguindo fortes na esperança de que pelo menos uma pequena parcela desse público poderá subir de nível e ler ganhadores dos prêmios Pulitzer ou Nobel. Talvez uma hora cheguem aos autores mais obscuros e aventureiros – mais ou menos como, no próprio Cinquenta Tons, a heroína Anastasia pode curtir um pouco de sadomasoquismo como parte do projeto para tirar Christian Grey de suas perversões e levá-lo às graças do sexo papai-e-mamãe no casamento convencional. É sempre um alívio ter motivos para pressupor que há mais por trás das motivações das pessoas do que só o mero interesse próprio.

Num nível mais profundo, há um desejo de acreditar num processo educativo que põe o intelectual numa relação pastoral com um público ingênuo que, como um animal de viseira, precisa ser conduzido para o rumo certo; isto é, a noção de que essa rampa que sobe do romance de banca até Proust abre espaço para a figura do educador benevolente que pega os leitores pela mão e os leva do estábulo às estrelas, como dizem os italianos. É bom postular um esquema de funcionamento das coisas em que aptidões possivelmente obsoletas como leitura atenta e análise crítica têm de fato um papel social importante.

O que ninguém quer aceitar – e sem dúvida há um elemento de preconceito de classes em ação aqui também – é que há muitos modos de viver uma vida plena, responsável e sensata que não envolvem a leitura de ficção literária. Logo, conclui-se que aqueles entre nós que de fato buscam esse hábito, sentindo que ele nos enriquece e ilumina, não estão em posse de uma ferramenta essencial para se sentir realizado ou da chave para proteger a civilização da decadência e do colapso. Somos só um bando de pessoas que, por motivos históricos e de condicionamento social, fomos abençoados com uma busca maravilhosa. Os outros podem ou não se encantar por ela, mas tenho dúvidas sérias de que E. L. James possa ser um primeiro passo rumo a Shakespeare. Melhor seria começar por Romeu e Julieta.

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