
O texto é sempre a sombra que se projeta na caverna de Platão. Uma sombra muito precária, mas é o que temos, porque já há um bom tempo, para a nossa consciência moderna, as coisas do mundo não falam mais por si sós como costumava acontecer nos bons tempos, digamos assim. Tudo precisa de intérprete. Na literatura, dada a impossibilidade essencial de autor biográfico e narrador (este entendido genericamente como qualquer conjunto de formas sintático-semânticas que criam a voz unitária de um objeto textual) serem as mesmas entidades, é preciso estabelecer diferenças. Ou, mais precisamente, graus de distância entre um e outro. Não é uma tarefa simples ou fácil.
Para definir com uma imagem a natureza dessa distância, podemos recorrer à metáfora de Roberto Calasso: "A literatura jamais é coisa de um só sujeito. Os atores são, pelo menos, três: a mão que escreve, a voz que fala, o deus que vigia e impõe". Deixemos Deus de lado, por tecnicamente insondável, e fiquemos nos dois atores principais a mão que escreve e a voz que fala (aquilo a que chamamos narrador). Pois bem, no texto literário essas duas entidades assumem necessariamente intenções diferentes. Ou seja, a voz que fala no texto tem um grau razoável de autonomia com relação à mão que escreve.
No caso da biografia, ao contrário, a intencionalidade da mão que escreve instala-se em cada palavra da voz que fala no texto, de uma forma completa e absoluta. Esse é um acordo de princípio estabelecido pela onipresença do "mundo dos fatos". E, de certa forma, é com relação a essa férrea disposição do autor do texto que julgamos a qualidade de uma biografia. Claro que há outros fatores importantes envolvidos e que podem mesmo tomar de empréstimo as categorias da teoria literária podemos julgar uma biografia pelo estilo, pela clareza, pela força das metáforas, pelo peso da emoção, pela divisão em partes, pelo jogo de presente e de futuro, pelo brilho da linguagem, enfim; mas, se a representação do "mundo dos fatos" falha, nada sobrevive.
É claro, também, que "mundo dos fatos" é uma expressão ampla demais, e toda biografia recorta, desse mundo que afinal é o evento histórico completo, o seu foco, o que interessa revelar (um breve período, uma época, a vida familiar, o aspecto político, etc.). Delimitada essa moldura, o império dos fatos deverá ser soberano. Ou, melhor dizendo, a intenção sincera de representá-lo, mesmo sabendo que essa é sempre uma tarefa de Sísifo.
Passemos a um exemplo, atualíssimo e de larga circulação o best seller O Mago, de Fernando Morais. Trata-se da biografia de Paulo Coelho, o homem que mais vendeu livros na era moderna, e um dos cinco ou seis maiores best sellers da História. O subtítulo do livro é "A Extraordinária História do Escritor Paulo Coelho".
Apesar da expressão "extraordinária história" sugerir, quem sabe, um toque ficcional, o texto é inequivocamente uma biografia. No ótimo livro de Fernando Morais, à página 65, o leitor encontrará a informação de que José de Alencar, um dos mais respeitados e populares romancistas brasileiros, é tio-trisavô de Paulo Coelho. E em seguida: "Fundador, junto com Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, Alencar foi seu primeiro, mas não o único, ancestral a envergar o fardão verde-oliva da ABL. Nos primeiros anos da instituição, dois seus tios-bisavós haviam alcançado a imortalidade: o crítico literário Tristão de Alencar Araripe Júnior e o poeta Mário Cochrane de Alencar, filho de José de Alencar, que sucedeu a José do Patrocínio na cadeira número 21 a mesma que Paulo viria a ocupar muitas décadas depois".
Aqui este leitor embatucou. Ora, no mundo dos fatos, José de Alencar morreu em 12 de dezembro de 1877, 20 anos antes da fundação da Academia Brasileira de Letras, que só ocorrerá em 1897, e portanto jamais poderia ter fundado a instituição junto com Machado ou envergado o célebre fardão. Como o pacto biográfico está aceso na cabeça do leitor, o texto aqui sofre um solavanco irremediável. Não há nenhuma hipótese que consiga transformar esse parágrafo numa peça de ficção é apenas no "mundo dos fatos" que ele pode ser discutido.
"Narração verdadeira"
Entretanto, há um grande número de textos ficcionais que podem ser enquadrados numa categoria intermediária; textos que, lidos, evocam na cabeça do leitor a ideia de "biografia", ou, como algumas editoras costumam colocar em tarjas chamativas nas capas dos livros, evocam a ideia de "história verdadeira". (Eu mesmo já fui vítima dessa estratégia; a edição italiana do meu romance O Filho Eterno, sob o título de Bambino per Sempre, trazia a informação no alto "una storia vera"...)
Há vários aspectos a ser discutidos sobre esse selo de "fato verdadeiro" aposto a obras que se querem de ficção, que se articulam como romances ou novelas. Obviamente, as editoras não forçariam a barra se não houvesse um certo consenso popular de que um "fato verdadeiro" tem um status superior à pura ficção. O leitor ingênuo, ou pouco letrado (se eu não estiver aqui manifestando simplesmente um preconceito), valoriza mais o que é "verdade" em detrimento do que seriam "invencionices".
Afinal, a verdadeira ficção é feita de invencionices; e o fato de que a narração literária desprendeu-se definitivamente de sua "obrigação de verdade" é um dos toques fundamentais da modernidade. Mas best sellers como O Código da Vinci, por exemplo, ganham mais leitores à medida que parecem se fundamentar em fatos reais da história. Em suma, o status de "narração verdadeira" valoriza a obra. Há como que uma ideia atávica, milenar, de que a palavra escrita tem um compromisso com a verdade; que o seu valor está na razão direta de seu compromisso com a "realidade", entendida aqui como seu espelho imediato.
De qualquer forma, é interessante perceber a alimentação mútua dos gêneros, digamos assim, em que intenções claramente distintas apropriam-se de marcas formais alheias, que, em qualquer caso, estão sempre a serviço da intenção primeira, básica, definidora do texto.
Vamos pensar em Os Sertões, de Euclides da Cunha. É claramente um livro de historiografia e de ciência, mas há algo no leitor de sempre que resiste a ver na obra apenas isso. Seus traços literários alguns deles, é verdade, mais ou menos típicos de uma ciência altissonante, que tomava a retórica de empréstimo à literatura para frisar enfaticamente sua verdade dão-lhe uma vitalidade romanesca que a pura ciência ou a pura história não sustentariam. Apesar disso, o gênero ensaístico é rigorosamente o dominante, a sua marca primeira e fundamental; Euclides da Cunha "coincide" com as palavras do narrador de seu livro tanto nos fatos da história brasileira que relata quanto nas conclusões científicas que tira ao analisar a Guerra de Canudos.
Mas se abrimos o romance A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, um livro por princípio fundamentado na realidade factual da mesma Canudos, a distância entre "a mão que escreve" e "a voz que narra" é notável. O elemento factual, ao entrar na moldura da ficção, perde o seu estatuto de realidade, a sua âncora diferencial, e passa a pertencer à família dos elementos ficcionais com exatamente o mesmo status; a cidade verdadeira e a cidade imaginária que por acaso apareçam num capítulo são ambas cidades ficcionais para os fins da representação romanesca do mundo.
Já na biografia, como vimos, o elemento factual, a realidade, a verdade, qualquer nome que se dê à intenção inalienável de representar fielmente os fatos do mundo concreto é de fato o seu eixo regulador absoluto. Na biografia, autor e narrador coincidem ao estabelecer o elemento factual como o centro do texto. Por essa razão, Machado de Assis e José de Alencar, numa biografia qualquer, jamais poderiam ambos vestir o fardão da Academia, porque há um dado absolutamente incontornável a impedi-los, que imaginação nenhuma poderá suprir sem destruir a intenção do narrador e portanto a integridade de seu texto.
(*) Este texto é uma versão editada da conferência apresentada pelo autor no 11.º Congresso Internacional da ABRALIC Associação Brasileira de Literatura Comparada (São Paulo, USP, 16 de julho de 2008).
Serviço
Confira a íntegra do texto na internet: http://www.cristovaotezza.com.br/textos/p_palestras.htm



