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Numa tarde de novembro em Cartagena, na Colômbia, um homem de voz suave e gestos largos contava histórias para um público de quatro pessoas em um restaurante no centro histórico, quando dois rappers de rua se aproximaram. Cantaram de improviso algo sobre cada um dos presentes, até chegarem ao senhor, sobre quem fizeram uma rima com o verso “o vovô que se parece com Gabriel García Márquez”. Com a naturalidade de quem já passou por enganos parecidos, Jaime García Márquez, de 75 anos, apenas sorriu e continuou contando suas histórias.

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Oitavo dos onze filhos de Gabriel Eligio e Luisa Santiaga Márquez Iguarán, Jaime é hoje a conexão mais forte da família García Márquez com Cartagena. A cidade onde Gabo mantinha sua residência colombiana se prepara para receber as cinzas do escritor, que morreu em abril de 2014, na Cidade do México, onde vivia desde os anos 1960. Prevista para março, na Universidade de Cartagena, a cerimônia marcará o retorno simbólico do autor ao país natal e à cidade onde começou a carreira jornalística e que transformou em cenário de romances como “O amor nos tempos do cólera” e “Do amor e outros demônios”

“Gabito era muito amado no México. Mas ele nunca se naturalizou mexicano, e faz todo o sentido que retorne à sua terra”, diz Jaime, que, no entanto, se preocupa com a pompa em torno da transferência das cinzas, acertada entre a viúva de seu irmão mais velho, Mercedes Barcha, e o governo local. “O governo está gastando muito com isso. Mas nossa família sempre foi simples. Espero que não façam nada anti-Gabito.”

Jaime chegou a Cartagena em 1950, quando toda a família García Márquez se mudou para lá vindo da pequena Sucre, a 400 quilômetros de distância, no interior da Colômbia. Nascido em Aracataca, Gabo vivia em Barranquilla na época, mas logo se juntou aos parentes numa casa onde, apesar dos dois andares, os irmãos se amontoavam em quartos compartilhados. “Foi a casa mais viva das várias casas de Cartagena” onde viveram, escreveu Gabo no livro de memórias “Viver para contar”.

Jaime tinha 10 anos e guarda dessa época memórias e causos de família, que gosta de misturar, como o irmão mais velho também costumava fazer. Por muitos anos, Jaime exibiu essas habilidades aos visitantes que guiava em Cartagena, onde voltou a viver quando Gabo o convidou para ser diretor de Relações Institucionais da Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-americano (FNPI), criada pelo escritor e por Jaime Abello em 1995. Em longas caminhadas, Jaime mostrava a Cartagena ‘garciamarquiana’, evocando lugares e episódios que iluminam vida e obra do escritor.

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“Cartagena sempre foi um tema de Gabito. Toda sua obra está baseada na realidade. Nada era pura ficção, ele sabia tornar o real poético. O que chamam de ’realismo mágico’ eu chamo de ‘coincidência bendita’, diz Jaime, que, segundo quem conheceu Gabo, fala com as mesmas pausas dramáticas e sorrisos irônicos do irmão.

Naquela tarde de novembro, Jaime voltou a guiar um grupo pela primeira vez depois de oito anos. Animado, conduzia os visitantes pelo cotovelo para mostrar uma esquina ou um prédio antigo, antes de começar com um invariável “Gabito contava que...”.

A Cartagena que Jaime revelou aos visitantes, cheia de memórias e histórias de Gabo, pouco lembra a cidade atual, onde as cinzas do escritor vão se tornar uma atração turística a mais. No lugar da antiga pensão do Parque de Bolívar, no centro histórico, onde Gabo tentou passar a primeira noite em Cartagena, em 1948, está hoje uma boutique. Enxotado pela dona do hotel por não ter dinheiro para o quarto, teve que cochilar em um banco da praça, aponta Jaime, mas o lugar agora está tomado por carruagens e cocheiros engravatados à caça de turistas.

Gabo chegou a Cartagena vindo de Bogotá, para escapar dos violentos tumultos causados pelo assassinato do líder de esquerda Jorge Eliécer Gaitán, em 1948. Em meio à instabilidade do país, foi preso no banco de praça por violar o toque de recolher, mas acabou no bar com os policiais, que fizeram o favor de deixá-lo dormir na cadeia.

A Cartagena de hoje é muito diferente da que foi revelada a Gabo, naquela época, “não como o fóssil de papel machê dos historiadores, mas como uma cidade de carne e osso que não estava sustentada por sua glória marcial, e sim pela dignidade de seus escombros”, escreveu o autor em “Viver para contar”.

“Escuta essa”, diz Jaime, emendando uma história sobre o dia em que seu pai morreu e Gabo levou os irmãos para conversar no único lugar onde não incomodariam o escritor famoso: um bordel. “Mas as prostitutas reconheceram Gabito e fizeram fila para pedir autógrafo. Eram todas leitoras dele.”

Jaime mostra o lugar onde Gabo teve seu primeiro trabalho como repórter, a antiga redação do jornal “El Universal”, hoje em ruínas, na mesma rua da atual sede da FNPI. Lá o escritor manteve uma coluna entre 1948 e 1950, enquanto matava aulas de Direito na Universidade de Cartagena, a mesma que receberá suas cinzas. Nesses textos, descrevia o prazer de varar a madrugada pelas ruas, saudava os acordeonistas da região e pescava no cotidiano da cidade histórias que poderiam estar em seus romances, como o nascimento quase simultâneo de quatro pares de gêmeos no hospital local.

Antes das crônicas, Gabo publicou em um jornal de Bogotá, em 1947, seu primeiro conto, “A terceira resignação”. Jaime diz que o protagonista da história fantástica, uma criança que continua a crescer mesmo depois de morta, é inspirado nele.

“Fui um bebê prematuro, e nossa mãe colocava algodão numa caixa para me acomodar, como fazem com o protagonista do conto. O personagem sou eu. Gabo negava para não me pagar os direitos”, brinca Jaime, explicando o nome desse tipo de causo exagerado na Colômbia. “Chamamos isso de mamar gallo.”

O passeio termina no lugar favorito de Jaime relacionado à obra do irmão: o Portal de los Dulces. É o cenário de um trecho decisivo de “O amor nos tempos do cólera”, quando Fermina Daza reencontra Florentino Ariza, mas rejeita o pretendente, com quem só se reencontraria 51 anos, nove meses e quatro dias depois. Florentino decide escrever uma carta de amor desesperada a Fermina, mas esse texto não aparece no romance. Contador de histórias nato que nunca publicou livros, Jaime diz que Gabo pediu conselhos a ele para escrever a carta.

“Eu disse que era ele o irmão que entendia de estruturas literárias. Mas ele respondeu: ‘Cartas de amor não têm estrutura literária’. E pediu ajuda. Então eu disse: ‘Sou o García Márquez que não escreve nem cartas de amor’.

Cerimônia em março

Depois da morte de Gabriel García Márquez, em 17 de abril de 2014, a família foi muito questionada sobre o destino de suas cinzas. Ficariam no México, onde ele vivia desde 1961 com a mulher, Mercedes Barcha, e escreveu obras-primas como “Cem anos de solidão”? Ou voltariam à terra natal? O impasse só foi resolvido em agosto deste ano, quando Mercedes comunicou a autoridades colombianas o desejo de que as cinzas fossem transferidas para o país. Mas não para Aracataca, cidade natal do autor e inspiração da mítica Macondo, e sim Cartagena.

O local escolhido foi o claustro La Merced, da Universidade de Cartagena, no centro histórico, onde o autor cursou Direito por dois semestres no fim dos anos 1940. Inicialmente marcada para 12 de dezembro, a cerimônia foi adiada devido às obras ainda necessárias para adaptar o edifício do século XVII ao afluxo de visitantes. A nova previsão é março, segundo a secretária-geral da universidade, Marly Mardini.

Além de um monumento com um busto do escritor, onde as cinzas serão depositadas, a universidade ganhará uma exposição audiovisual sobre Gabo. Também será criada a Cátedra Gabriel García Márquez, para incentivar pesquisas em torno de sua obra e sua relação com o Caribe colombiano. Os detalhes da cerimônia ainda serão definidos pela família.

“Ficamos honrados. A universidade não será só um depósito das cinzas. Teremos um projeto cultural e acadêmico em torno de García Márquez”, diz Mardini.

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