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 | Ilustração de Kat Menschik/Divulgação
| Foto: Ilustração de Kat Menschik/Divulgação

Se há interesse no seu horizonte de leitura, caro leitor, por Haruki Murakami, aconselho alguns possíveis diálogos: 1) literatura japonesa e chinesa: pense em Soseki, um dos primeiros “modernos” do Japão, e Lu Xun, que Murakami diz admirar, um dos primeiros “modernos” da China; 2) uma certa literatura europeia: pense que o autor estudou esse tema, que admira diversos autores europeus, de diferente épocas e idiomas, e que as citações de autores ocidentais são abundantes no texto de Murakami, assim como os diálogos com); 3) a ponte com a música: pense na música erudita, em compositores não muito “fáceis” como Janáček, o jazz, a música pop, notadamente a dos anos 1960, preponderantemente a inglesa; 4) a mística japonesa: histórias e lendas do Japão antigo; se não conhece, parta de Lafcádio Hearn, também conhecido por Yakumo Koisumi; 5) o surrealismo ou o onírico, a loucura, a demência, insanidades em geral, enfim, e o efeito psicotrópico (sei que são coisas distintas, mas não há exatamente um fio que se possa puxar para desembramar o novelo da escrita dele sobre tais aspectos); 6) o universo ciberculto, com o qual dialoga num nível muito profundo em que técnica de escrita se entrelaça com o conteúdo; 7) os universos paralelos possíveis, de diversas literaturas; 8) o mundo do além (fantasmas de soldados, por exemplo, da II Grande Guerra no meio da narrativa); 9) o universo dos games, dos mangás, das narrativas modernas japonesas (e coreanas e chinesas e tailandesas) de um universo mágico, fantástico, surreal, irreal, da ficção científica, o nome com o qual você se sentir mais a vontade para usar, mas possível no campo das artes; se quiser comparar com outros artistas orientais, sugiro Kim Ki Duk, Park Chan-wook, Apichatpong Weerasethakul e Takashi Murakami, seu conterrâneo. Nenhum desses (cineastas e artista plástico) tem obra fácil de absorver — todos são misteriosos em alguns momentos, pois as obras contemporâneas prescindem de respostas fechadas e acabadas; 10) o discurso das áreas “psi”; 11) vários gêneros romanescos, entre eles o policial…

E poderíamos colocar as ausências, começando-se pelo silêncio em relação à literatura americana, por exemplo.

Como segundo passo, eu sugiro que se separem as obras de Murakami, provisoriamente, em três grupos: a) as mais emotivas e que tratam de relacionamentos entre casais, como Norwegian Wood; b) os romances mais conceituais, como Crônica do Pássaro de Corda; c) os de entretenimento, como 1Q84. Mas devagar com o andor: em romances como Minha Querida Sputnik e Kafka à Beira-Mar tudo isso está entrelaçado, às vezes sobressaindo mais uma escolha que outra.

Escolher a primeira obra de um autor é um risco. Costumo dizer que se algum leitor começar Yukio Mishima por Mar Inquieto, é possível que jamais descubra um dos maiores escritores do século 20. Então, sugiro O Pavilhão Dourado. Alguns autores têm busca estética complexa — procuraram a vida toda não por um estilo apenas ou um só tema. Na literatura brasileira, citemos o caso de Graciliano Ramos. Nunca foi interesse dele escrever Vidas Secas repetidas vezes.

Livro

Sono

Haruki Murakami com ilustrações de Kat Menschik. Tradução de Lica Hashimoto. Alfaguara/Objetiva, 120 pp., R$ 37,90.

Para alguns, obras de Murakami como O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação são obras infantojuvenis. Embora eu discorde veementemente, não vejo problema sério nisso. Não é demérito escrever para crianças ou adolescentes (sendo que o próprio conceito de “juventude” mudou bastante nas últimas décadas, com expressões novas como “betweens” e “kidults”). Mas valeria lembrar que há obras muito profundas que poderiam estar na estante de “infantojuvenil” da sua livraria predileta. Cito o caso de Luka e o Fogo da Vida, de Salman Rushdie. Só não se esqueça de que o que é adulto numa época é infanto em outra e assim caminha a literatura. Penso em Júlio Verne ou Bram Stoker. E há obras infantojuvenis lidas por adultos e estudadas por pensadores muito sérios. E não se deixe levar pelo enredo “romântico” de alguns livros de Murakami. O cenário é sempre complexo. O autor nunca deixa de lado a realidade atual do Japão. Esqueça aqueles velhos dizeres sobre um país “entre a tradição e a modernidade”, “país que se abriu para o Ocidente em tal ano”, “país que perdeu a guerra para os americanos”. O Japão é bem mais que isso, assim como o Brasil também o é, ou Kiribati, e Murakami não perde de vista situações bastante caras ao japonês comum (ou ao cidadão estrangeiro que vive no Japão): o suicídio, a terrível e alarmante situação da mulher ou dos gays (que não têm legislação para união estável num país dito “de primeiro mundo”), a acachapante exigência em relação ao sujeito japonês, de vida voltada ao trabalho e à família, a dificuldade em lidar com as questões do corpo, a moda, a língua, as mega cidades, etc., etc., etc. Ele ainda ironiza a sociedade de consumo em que se transformou seu país, consumo que trouxe uma felicidade superficial e que não é para todos.

Haruki Murakami é um escritor prolífico. Tem lançado ao menos um livro a cada ano — e alguns são obras bastante extensas. Em algumas entrevistas, o autor disse que tem uma rotina rígida de escrita.

Tal característica preocupa certa crítica: um escritor prolífico não teria tempo para cuidar da qualidade de sua obra.

Escritores prolíficos sempre existiram. Alguns ficaram para a história da literatura, como Thomas Mann; outros, não — como Pearl Buck. Ambos foram laureados com o Nobel, mas isso não diz muito de um autor. Ambos também viveram na mesma época. Isso não quer dizer que tenham tratado das mesmas questões. Em se tratando do Nobel, inclusive, a torcida para Murakami costuma ser grande, mas há certa ingenuidade dos leitores em relação a essa premiação.

A noção de espírito de época, de escola literária, de movimento literário — tudo isso já foi largamente discutido. E refutado também. Não parta daí, para ler Murakami.

Melhor então tentar entender Murakami como um fenômeno, sem comparações rasas ou temerosas.

Quem define o que é um bom autor? Quem define o que é uma boa obra? Quem define qual obra é melhor? Com que critérios? O leitor deveria fazer isso sozinho.

Afora essas questões todas, há ainda a obsessão pelo sono, pelo suicídio, pela distância, pela solidão, pela dor, pelo vazio das grandes cidades. A questão do gênero, da orientação sexual, do biotipo, preferências sexuais, da identidade de gênero, etc…

Murakami produz um mapa das “doenças” do mundo pós-moderno. Ao término da leitura, talvez você se pergunte onde está o final. Nem tente procurá-lo, pois o mundo é assim, não tem começo ou fim.

Então, boa sorte! Você pode não gostar, mas ficar indiferente a ele é outra história.

Benedito Costa Neto é doutor em Estudos Literários pela UFPR. É consultor de empresas, escritor e crítico. Mora em Curitiba desde 1993 e nasceu em Quatiguá. É autor do livro de ficção “Diante do Abismo” e de diversas publicações críticas na área das Artes Plásticas.
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