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A Segunda Pátria é a estreia do escritor paranaense Miguel Sanches Neto na Intrínseca, uma das mais importantes editoras brasileiras. É também o primeiro livro escrito sob encomenda pelo autor, ou seja, com o tema já definido pela própria editora. À reportagem da Gazeta do Povo, Sanches Neto contou mais sobre a criação do sexto romance de sua carreira que traz para o leitor uma narrativa atrelada à discussão do papel do negro na sociedade.

Você foi convidado a escrever este romance. É seu primeiro livro encomendado. E como foi esse processo de criação comparado aos demais? Há muita diferença em criar uma história com um tema “pré-definido”?

De fato, este foi o primeiro livro encomendado que escrevi, já havia produzido contos para antologias temáticas a pedido dos organizadores. Mas não há diferença significativa entre escrever um conto ou um romance sob encomenda, além, é claro, da complexidade própria de cada gênero. A decisão parte do mesmo critério. Só aceito este tipo de desafio quando, depois de uma avaliação, vejo que é possível relacionar os meus interesses de ficcionista ao projeto que está sendo apresentado. No caso de A Segunda Pátria, a proposta da editora permitia que eu construísse uma história em um universo ficcional em que transito, o sul do Brasil. Agora, em relação aos meus outros romances e contos, há uma diferença fundamental. No demais, só escrevo depois que uma história se torna tão importante para mim que não há outra saída a não ser colocá-la no papel. Já com uma história encomendada, eu tenho que fertilizar minha imaginação para que surja a narrativa. Há um trabalho prévio. Faço isso lendo livros, documentos, buscando na memória fatos que possam iluminar o livro. Nos outros livros, a história vem de forma mais espontânea.

A proposta da Intrínseca era que o romance se passasse na Era Vargas. E por que você escolheu ambientá-lo dentro de uma sociedade nazista?

O mote da editora já induzia a isso. O que me propuseram foi: o que aconteceria se Getúlio apoiasse a Alemanha de Hitler e não os Estados Unidos na Segunda Guerra? Então, tratar dos nazistas era algo inescapável. Sempre tive interesse em conhecer um pouco mais sobre este período de entusiasmo nazista no Brasil. Mas é um assunto tabu, com pouca produção mais crítica, mais independente dos laços de sangue. Estuda-se bastante o que ficou conhecido como “nacionalização”, a ação de Vargas para acabar com as colônias estrangeiras, quando se impôs a língua portuguesa aos núcleos alemães e italianos, que falavam apenas as suas línguas europeias. Eu queria conhecer o que aconteceu antes disso. Já havia lido alguns livros, que me marcaram muito. Voltei a eles e ampliei as leituras. O ficcionista não tem um compromisso com o factual. Todo o seu compromisso é com a história em si. Então, criei um pequeno universo de personagens para imaginar como seria um Brasil sob o nazismo. A primeira questão que me coloquei foi: quem seria perseguido aqui? E os próprios livros sobre o tema me deram a resposta: os negros e os mestiços em geral. Mas principalmente os negros. A libertação dos escravos era ainda coisa recente. Somava-se à ideologia nazista uma visão escravocrata da sociedade. A mistura desses dois preconceitos geraria uma perseguição aos descendentes de africanos. Eles não seriam mortos, mas serviriam como mão de obra gratuita em fazendas e fábricas. É esta a minha percepção de ficcionista sobre a possível nazificação do sul do Brasil.

Assim como Um Amor Anarquista e A Máquina de Madeira, A Segunda Pátria é um romance histórico. O que mais te agrada em escrever livros com estas características?

Este é diferente dos meus outros dois romances que se passam no passado. Aqueles tratam de um tempo e de fatos que existiram. Este trata de um passado que poderia ter existido, mas não ocorreu, graças a ações de todos, de sacrifício de brasileiros e estrangeiros aqui residentes. A segunda pátria é um romance de história alternativa. É uma espécie de ficção científica histórica. Neste tipo de livro, o que mais me atrai é a possibilidade de localizar temas e personagens que não foram centrais, que não estão entre os vencedores da história, e dar a eles um protagonismo. É uma forma de valorizar ideias e pessoas que não triunfaram. Este é um papel importante da ficção histórica, o de entender ficcionalmente o passado a partir do que ficou na sombra. No fundo, estas narrativas nascem de um posicionamento do presente que faz uma leitura a contrapelo de um período. No caso de A segunda pátria, toda a discussão do papel do negro na sociedade atual, uma contribuição hoje tida como muito valiosa, serviu para criar o personagem Adolpho Ventura, que é um dos protagonistas do romance, um negro que teve acesso ao estudo, mas que perdeu o contato com os seus. Esta duplicidade de identidade vai ser resolvida de forma trágica no romance.

Em seu diário semanal no blog da editora, você disse que, inicialmente, estava com medo de não conseguir dar conta do romance. Por quê?

Em um determinado momento, depois de ter feito muitas leituras, comecei a ficar com medo de não conseguir transformar aqueles dados em uma história que emocionasse os leitores. O maior risco de quem escreve ficção a partir de dados históricos é querer dissertar, explicar o período para o leitor. Eu estava naquele momento com receio de não conseguir construir uma história que fosse de leitura rápida e agradável, que encenasse no palco da página dramas humanos. Havia tantos dados, tantos elementos, e eu tinha de deixá-los implícitos. Era uma dúvida diante da imensidão do tema, pois o nazismo talvez seja o assunto que mais foi tratado em ensaios, filmes e na ficção. Mas acredito que faltava uma abordagem corajosa do entusiasmo brasileiro com esta ideologia, que foi o que tentei mostrar numa história de amor inter-racial em um período de defesa da eugenia.

Os personagens do livro são todos muito bem delineados. A jovem Herta, por exemplo, recebeu um caráter psicológico tão forte que, na minha opinião, conseguiu concentrar grande parte do drama de toda a obra. O que te inspirou a criar os personagens de A Segunda Pátria?

A alemã Herta é para mim o lado bom do ser humano. Criada em um ambiente nazista, vivendo uma escandalosa liberdade sexual, ela conhece a Alemanha de Hitler em 1935, recebe uma formação extremamente racista, mas vai aos poucos sabendo ler os seus sentimentos mais recônditos, que não davam a menor importância para os valores de seus pares. Ela usa o corpo para acolher aquele que representa o mal para os demais nazistas. Até ao ponto de viver apenas para o amado, perdendo o seu lugar naquela sociedade e se tornando uma encarnação da louca. No final, quando são os seus pares que sofrem com uma repressão ao nazismo, ela se condói por eles também. É uma espécie de personagem catalisadora de todos os fatos. Para construir esta e outras personagens, busco sempre me colocar no lugar deles, imaginar como eu seria naquelas circunstâncias, viver numa outra pele, pois é isso a literatura, o ato extremo de se colocar no lugar do outro, único antídoto para os preconceitos.

O seu novo livro chega às livrarias pela editora Intrínseca. É uma das casas editoriais mais influentes do país. O que representa isso para a sua carreira?

Embora meu romance tenha saído depois de outros de autores nacionais, fui o primeiro autor brasileiro de ficção contratado pela Intrínseca, o que para mim é um grande orgulho. E cheguei a interromper a minha coluna aqui na Gazeta do Povo para poder concluir este projeto. Acho que este é meu livro mais universal, tematicamente falando, aquele que pode interessar a um público mais amplo. Todo escritor sonha sempre ir além daquele público já fidelizado por seus livros. É nisso que a Intrínseca e eu estamos empenhados.

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