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“Quando vi aquela foto, pensei na crucificação da infância e da inocência”, diz o poeta Adonis. | Mariusz Kubik/Wikimedia Commons
“Quando vi aquela foto, pensei na crucificação da infância e da inocência”, diz o poeta Adonis.| Foto: Mariusz Kubik/Wikimedia Commons

Assim como os milhares de refugiados que têm chegado à Europa nas últimas semanas, o poeta sírio Adonis, de 85 anos, buscava exílio quando desembarcou em Paris, na década de 1980.

Hoje considerado o maior nome da poesia árabe moderna, sempre cotado para o Nobel de Literatura, ele precisou escapar do Líbano, onde vivia, por causa dos conflitos no país.

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Dois fatos sobre Adonis

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Talvez por isso, diz o escritor, tenha sentido tanto o impacto da imagem do menino sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, encontrado morto numa praia da Turquia semana passada depois de naufragar com a família e outros imigrantes.

“Quando vi aquela foto, pensei na crucificação da infância e da inocência. Pensei também que ela é um símbolo da relação atual entre o Ocidente e o mundo árabe. A reação dos países ocidentais à crise dos refugiados, sobretudo daqueles com passado colonial, como Inglaterra, França, Itália e Bélgica, não está à altura dessa catástrofe. A postura deles guarda um fundo de imperialismo”, diz Adonis, por telefone, de sua casa em Paris, onde vive há três décadas.

Imagens Cruéis

Um olhar crítico sobre o mundo está presente em muitos poemas de Adonis.

Em “Espelho do século XX”, de 1968, ele descreve seu tempo com imagens cruéis:


“Caixão revestido com
rosto de menino/ livro
escrito nas entranhas
de um corvo/ fera que
avança levando uma flor/ rocha que respira nos pulmões de um louco/
assim é/ o século XX”.

A relação entre Ocidente e mundo árabe é um tema central na obra de Adonis – pseudônimo adotado por Ali Ahmad Said Esber, nascido em 1930, num vilarejo no norte da Síria.

Desde os primeiros poemas, ele buscou uma aproximação entre a rica tradição literária árabe e as inovações formais do modernismo europeu, influenciado por autores como Rimbaud e T.S. Eliot.

Com essa experiência de trânsito, acredita que a arte é o melhor canal para o diálogo entre culturas.

“A identidade de um povo é forjada pela arte e pela criação humana, não pelo comércio ou pela política. Em Paris, onde conviviam muitos artistas estrangeiros, encontrei um espaço universal. Eu me integrei a esse espaço e, por isso, não me sentia um refugiado”, diz Adonis, que tem apenas um livro no Brasil, “Poemas” (Companhia das Letras, tradução de Michel Sleiman), publicado em 2012, quando esteve na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

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Dois fatos sobre Adonis

Política

Adonis sempre procurou se manter independente em relação às forças políticas de seu país natal. Ataca com veemência o Estado Islâmico, que hoje controla uma vasta porção do território da Síria e do Iraque, onde é aplicada a sharia (lei islâmica). Mas também critica o presidente sírio Bashar al-Assad, que se mantém no poder desde 2000 e vem massacrando opositores que tentam derrubá-lo desde 2011, no esteio da Primavera Árabe. Acredita que a onda de refugiados sírios é provocada tanto pelas ações do regime de Assad como pelo avanço dos fundamentalistas, e que o Ocidente tem uma parcela de responsabilidade por ambos.

Primavera Árabe

Mesmo o encantamento de Adonis com a Primavera Árabe arrefeceu. Apoiador de primeira hora dos protestos populares que se espalharam por Egito, Tunísia, Iêmen, Líbia e outros países nos últimos anos, ele chegou a escrever um livro sobre o tema (”Primavera árabe: religião e revolução”, inédito no Brasil). Mas acredita que a energia jovem e revolucionária do movimento se perdeu com a sabotagem do Ocidente e a ascensão do extremismo no vácuo da instabilidade política na região.

Prestes a lançar na França o livro de ensaios “Islã e violência”, Adonis é crítico de todos os monoteísmos – muçulmano, judaico e cristão. O poeta os considera “essencialmente antidemocráticos” e “fundados na violência”, pois se acreditam donos da “verdade última”.

Em sua leitura da tradição árabe, ele evoca uma linhagem de poetas místicos que se opunham às instituições religiosas, como Abu Nuwas, Abu Tammam e Al-Ma’arri, que viveram entre os séculos 8.º e 11. Assim, busca recuperar um ramo do pensamento islâmico que contradiz o fundamentalismo religioso que se espalha pelo mundo árabe hoje.

Adonis se sente especialmente ofendido quando ouve falar em “poetas jihadistas”. São combatentes de grupos extremistas, como o Estado Islâmico e o Boko Haram, que escrevem versos exaltando suas ações sanguinárias.

“Falsos poetas!”, corrige. “Não encontramos na História nenhum grande poeta árabe que acreditasse na religião oficial. Todos eram contrários à religião. Quando um poeta se torna partidário de uma ideologia, ele perde sua independência e sua criatividade.”

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