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O mercado editorial nunca mais será o mesmo. Ao menos a parte dele dedicada à não-ficção. É possível que empresas tenham de contratar profissionais para atestar a veracidade das informações – os chamados "checadores" (fact checkers, em inglês) – antes de publicar obras do gênero. Tudo isso por causa de uma pessoa: a apresentadora de tevê Oprah Winfrey.

Para o seu público, nos EUA, Oprah reúne o carisma de uma Ana Maria Braga com o prestígio de uma Marília Gabriela, porém muito mais rica e influente do que as duas juntas. O programa que leva seu nome é uma instituição capaz de alçar desconhecidos ao estrelato e, desde o final dos anos 90, quando criou o "Clube do Livro da Oprah", de transformar qualquer lançamento editorial em best seller. É o chamado "efeito Oprah": quando dá sua chancela a um título, este vende centenas de milhares de cópias no prazo de dias.

Como parte das atividades do clube, programas dedicam-se a debater a obra, entrevistar o autor e ouvir impressões de leitores. No final de outubro do ano passado, "Um Milhão de Pedacinhos", de James Frey, foi o eleito. Com o adesivo "Oprah's Book Club" na capa, vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares. Em 2005, só perdeu para "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", de J. K. Rowling.

Frey – pronuncia-se "frai" – é alcoólatra e viciado em drogas, na maior parte das vezes crack ou cocaína. Por elas, viveu todo tipo de aventura degradante. Impôs um bocado de sofrimento aos seus pais, passou por instituições de reabilitação, se envolveu em brigas com policiais, terminou preso e, mal tinha saído da adolescência, era um criminoso procurado em três estados americanos.

Mas ele deu a volta por cima. Embora não concorde com os 12 passos – considera a dependência do álcool uma fraqueza e não uma doença – freqüentou reuniões dos Alcoólicos Anônimos e conseguiu se reabilitar. Essa história de superação é relatada em "Um Milhão de Pedacinhos", publicado no Brasil em 2003 pela Objetiva – mesmo ano do lançamento nos EUA. O livro é apresentado como as memórias de um sobrevivente e deve ser adaptado aos cinemas ao longo deste ano. Atores de primeira linha são cotados para interpretar Frey, entre eles, Tobey Maguire ("Homem-Aranha"), Orlando Bloom ("Cruzada") e Jake Gyllenhaal ("O Segredo de Brokeback Mountain").

O programa da Oprah foi exibido pelo canal GNT brasileiro com quase um mês de atraso, em novembro. De acordo com dados da Objetiva, pouco mais de 500 exemplares foram vendidos desde então – número considerável para o mercado nacional, inclusive por se tratar de um título lançado dois anos antes.

Tudo ia bem para Frey até que, no dia 8 de janeiro, o site investigativo "The Smoking Gun" (www.thesmokinggun.com) veiculou a matéria "Um Milhão de Mentirinhas", afirmando que o autor mentiu sobre vários acontecimentos de sua vida que apresentou como fatos. A reportagem se concentrou sobretudo na ficha criminal do autor-personagem. Um dos episódios mais controversos é o da prisão. No livro, foram 90 dias preso no condado de Licking, Ohio. Na realidade, não passou mais do que algumas horas detido. Ele nem sequer foi algemado. Essa é a questão mais comentada porque seu livro seguinte, "My Friend Leonard" (meu amigo Leonard, outro best seller nacional), começa quando conhece um sujeito de nome Porterhouse no primeiro dia de cadeia. Que nunca existiu.

No desenrolar dos eventos, a história foi parar na mídia. Ganhou muito espaço em jornais como o The New York Times e o The Washington Post, além de virar tema de um Larry King Live, da CNN. Primeiro, Oprah ressaltou a essência do livro e ofereceu seu apoio ao escritor. Depois, pensou melhor, e cobrou explicações. Frey demonstrou coragem e aceitou voltar ao programa de sua benfeitora.

Pablo Capistrano se utilizou de elementos biográficos em "Pequenas Catástrofes" (Rocco), mas entende que seu livro é um romance de ficção e não de memórias. "Eu procuro jogar com essa ansiedade por parte do leitor de saber o que é real ou não", explica. Embora não tenha lido "Um Milhão de Pedacinhos", reconhece que os americanos são muito ansiosos em relação ao embate verdade versus mentira, "talvez pelo puritanismo e pelo calvinismo". E cita o episódio envolvendo o presidente Bill Clinton, que não corria o risco de perder o emprego porque se envolveu com a estagiária Monica Lewinsky, mas chegou muito perto de sofrer um impeachment quando mentiu que nada havia acontecido.

O impasse entre verdade e mentira no mercado editorial transcende a discussão sobre ponto de vista. Duas pessoas podem ter visões opostas de um mesmo fato ou experiência – isso não é problema –, a reclamação dos leitores de Frey é que ele teria afirmado que viu e experimentou coisas que, na verdade, desconhece. "Do ponto de vista literário, é irrelevante. As pessoas não podem dizer que foram enganadas literariamente porque o engano faz parte do jogo", acredita Capistrano.

"Se sabe que os livros de memórias e as autobiografias se utilizam de recursos da ficção até certo ponto", diz Mail Marques de Azevedo, professora da Universidade Federal do Paraná e doutora em Literatura de Língua Inglesa. Ela cita o exemplo de Jamaica Kincaid, que incorporou a sua vida fatos que aconteceram a outras pessoas, fazendo do "eu" uma metáfora para "nós", pois se referia à raça negra. Porém, lembra a professora, inventar é próprio da ficção.

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