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Grupo protesta contra a morte de Keith Lamont Scott em Charlotte, na Carolina do Norte, em setembro. | Brian Blanco/AFP
Grupo protesta contra a morte de Keith Lamont Scott em Charlotte, na Carolina do Norte, em setembro.| Foto: Brian Blanco/AFP

“They Can’t Kill Us All” (não podem matar todos nós, sem tradução para o português), o novo livro do meu colega de Washington Post Wesley Lowery, é um guia sucinto para muitas das mortes que motivaram os protestos do Black Lives Matter (vidas de negros importam, em tradução livre) e para muitos dos personagens que emergiram ao redor do que Lowery descreve como algo melhor compreendido como uma ideologia do que um movimento.

E também acho que o livro deve ser lido como uma cartilha a respeito dos muitos desafios cotidianos envolvidos em se fazer jornalismo hoje.

O trabalho de reportagem é fácil de criticar de fora, mas um serviço que Lowery presta em “They Can’t Kill Us All” é guiar os leitores exatamente por através da maneira como faz seu trabalho.

Envolvimento emocional

Ele explica como faz conexões: em Missouri, por exemplo, teve ajuda de Chris King, o editor de um jornal semanal afro-americano, que assumiu algumas dos mesmas funções que um contato local desempenha para um correspondente no exterior.

Ele reconhece a natureza inerentemente invasiva do emprego, o fato de que o trabalho de reportagem envolve “aparecer no que é ou o melhor ou o pior dia da sua vida”, apesar de não observar ou explorar o intrigante paralelo entre a reportagem e o trabalho policial nesse aspecto.

Lowery captura seu próprio desconforto ao entrevistar as famílias dos mortos, “balbuciando um preâmbulo que é tanto um pedido de desculpas pelo fato de que estou na frente dessa pessoa fazendo perguntas em uma hora dessas quanto uma introdução para as perguntas em si. Você pode me falar sobre Walter? O que você lembrará a seu respeito?”

Os mortos pareciam-se com meu pai, meus irmãos mais novos e mim. A maneira como foram desumanizados me atingiu contundentemente, perfurando a camada de distanciamento emocional que tinha aprendido a adquirir desde que fora atirado para dentro da história em Ferguson.

Wesley Lowery em “They Can’t Kill Us All”

E ele lembra os leitores da tensão do trabalho ao relatar um incidente em que foi repreendido por seus tuítes a respeito da morte de Walter Scott, que foi alvejado pelo policial da cidade de North Charleston Micheal Slager, cujo julgamento está em andamento no momento em que escrevo essas palavras.

“Estava fazendo uma cena, birra, porque não queria entrar em um avião para a Carolina do Sul. Estava cansado”, escreve Lowery. “Os mortos pareciam-se com meu pai, meus irmãos mais novos e mim. A maneira como foram desumanizados pelos comentaristas dos canais de notícias a cabo me atingiu contundentemente, perfurando a camada de distanciamento emocional que tinha aprendido a adquirir desde que fora atirado para dentro da história em Ferguson.”

Mudanças

Críticos de jornalistas que acreditam que há algo como uma objetividade perfeita parecem ter pouca probabilidade de pegarem “They Can’t Kill Us All” para ler para começo de conversa, mas estaria curioso para saber se essas pessoas poderiam manter o perfeito controle que eles exigem se estivessem trabalhando no mesmo ritmo e sob as mesmas condições de tensão.

O livro não é meramente sobre a prática jornalística pessoal de Lowery; ele captura muitos dos novos fatores que influenciam a profissão.

They Can’t Kill Us All: Ferguson, Baltimore, and a New Era in America’s Racial Justice Movement

Wesley Lowery. Sem tradução no Brasil. Editora Little, Brown and Company, 256 págs., US$ 27. História americana.

Algumas das questões são técnicas; as novas ferramentas do jornalismo que permitem que a informação seja distribuída rapidamente e amplamente têm suas próprias limitações. Lowery lembra os leitores que ele estava no McDonald’s em que foi preso porque era “o único lugar perto o suficiente da rua onde Mike Brown tinha sido morto que tinha os três itens essenciais exigidos por um repórter fora da redação: banheiros, Wi-Fi, e tomadas.”

Os aplicativos que permitem que repórteres como Lowery (e colunistas como eu) gravem áudio em seus celulares interrompem a conexão do aparelho, forçando uma escolha entre capturar uma gravação completa e tuitar atualizações de um evento que está ocorrendo. E a emergência de novas ferramentas como Snapchat e Periscope fornecem novos meios de contar histórias para os jornalistas, que precisam ser incorporados ao planejamento da cobertura.

As novas ferramentas do jornalismo que permitem que a informação seja distribuída rapidamente e amplamente têm suas próprias limitações.Essas tecnologias também fazem com que seja possível que pessoas que não são profissionais façam trabalho jornalístico.

Essas tecnologias também fazem com que seja possível que pessoas que não são profissionais façam trabalho jornalístico. Lowery observa que Emanuel Freeman, um rapper que vivia próximo ao local em que Mike Brown morreu, deu o furo da morte de Brown. A newsletter Ferguson Protester, que atingiu 21 mil assinantes, deu a organizadores como Johnetta Elzie uma ferramenta para mobilizar leitores e promover ou criticar a cobertura noticiosa nacional. Transmissões ao vivo capturam os protestos e os tumultos.

O impacto não se deu apenas na forma de competição com os repórteres tradicionais. Como observa Lowery, “um blogueiro de St. Louis tirou uma foto de mim entrevistando alguns manifestantes em uma enorme passeada no centro da cidade e publicou um texto que sugeria que eu estava ‘marchando com os manifestantes’.”

“They Can’t Kill Us All” pode não ter sido o lugar para fazê-lo, mas uma exploração longitudinal de como esses fatores influenciam o jornalismo tradicional parece algo vital e importante em que se prestar atenção.

O mesmo é verdade para as exigências e tensões vindas de cidadãos comuns que Lowery identifica. Como repórteres constroem e mantêm a confiança em comunidades onde as pessoas sentem que a imagem de seus vizinhos foi distorcida e suas necessidades ignoradas pela imprensa local e nacional? Qual é o protocolo para repórteres da imprensa nacional que chegam em cidades nas quais seus jornais não tem escritórios permanentes?

Em uma seção de “They Can’t Kill Us All”. Lowery descreve um momento no qual um residente da Rua West Florissant abordou repórteres para perguntar se eles tinham alguma ideia de por que a eletricidade tinha caído. Eles não tinham, mas se questões sobre pobreza e infraestrutura fossem parte da história da morte de Mike Brown e da resposta a ela, deveria a falta de eletricidade ter sido algo que os repórteres da imprensa nacional investigassem?

Equilíbrio

Os perfis jornalísticos de pessoas mortas pela polícia podem ser “usados pelo leitor casual para decidir se o desfecho trágico que as acometeram poderia ter acontecido conosco, ou (...) se esse destino trágico estava reservado para alguém inatamente criminoso que se comportou de uma maneira que nós nunca faríamos.” Ao buscar equilíbrio na cobertura, repórteres podem compensar em excesso.

Lowery também é um afiado observador da maneira como o jornalismo existe em um ecossistema maior, especialmente quando cobre a atuação da polícia.

Os perfis jornalísticos de pessoas mortas pela polícia podem ser “usados pelo leitor casual para decidir se o desfecho trágico que as acometeram poderia ter acontecido conosco, ou (...) se esse destino trágico estava reservado para alguém inatamente criminoso que se comportou de uma maneira que nós nunca faríamos.” Ao buscar equilíbrio na cobertura, repórteres podem compensar em excesso.

E não é apenas a presença de repórteres que encoraja as pessoas a saírem e protestarem; protestos podem ser uma resposta às representações jornalísticas de suas comunidades.

Suspeito que “They Can’t Kill Us All” não satisfará aqueles leitores que gostariam de ver o jornalismo ocupar uma esfera separada e inviolável, não influenciado pela tecnologia, por pressões sociais ou mesmo simples exaustão física. Mas, para os mais realistas entre nós, “They Can’t Kill Us All” é um valioso testemunho de quão enredado o jornalismo está em nosso tecido social.

Tradução de Pedro de Castro.

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