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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Cena 1. Uma menina observa no ônibus a capa de O Alienista e pergunta à mãe o que significa o título. "Pare de ficar bisbilhotando o livro dos outros". Cena 2. Consulta ao dicionário para descobrir o que significa pundonoroso e albardeiro, presentes no clássico machadiano.

Se linguagem é a capacidade de comunicar bem, alguma coisa quebrou no diálogo entre o meio literário e o poder público, que, através de leis de incentivos fiscais, financiará a impressão de 600 mil exemplares de uma adaptação de O Alienista, de Machado de Assis, e de A Pata da Gazela, de José de Alencar. O objetivo é tornar as obras mais "acessíveis" aos jovens. As pedras vieram de todos os lados.

Aos livros. O Alienista, relançado recentemente pela Companhia das Letras, em parceria com o elegante selo Penguin, acompanha Simão Bacamarte, o dedicado alienista – espécie de psiquiatra – de Itaguaí, que funda um sanatório, a Casa Verde, com a disposição de curar toda espécie de desvio mental.

É das peças mais divertidas da literatura nacional. Sobre a esposa do alienista, "não bonita, nem simpática", diz o narrador: "D. Evarista foi o assunto obrigatório dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim Soares, e dois sóis, no conceito de um vereador".

Sustos

Por outro lado, A Pata da Gazela não deveria preocupar o contribuinte no que tange à possível perda de conteúdo significativo, objeto das principais censuras dos literatos: os adaptadores teriam de se esforçar muito para piorar o original.

Considerado, perceba, a "Cinderela Brasileira", A Pata... apresenta dois homens, um mulherengo e um feio, em busca do amor de uma moça. Horácio, o vil, em certo momento, se apaixona por um sapatinho que cai de uma carruagem e entra em desespero ante o membro inferior adorado: "Um pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um céu! [...] Senhor! Por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquele pezinho."

Também aparecem por lá alguns sustos, como "sainete" e "debuxo". Mas, trocá-los por outras palavras, mais "modernas", não garante melhor compreensão. "Cada palavra possui funções específicas e carrega valores psicológicos, históricos e sociais. Ainda que dois substantivos remetam exatamente ao mesmo objeto, eles não serão idênticos em sentido", afirma Gissele Chapanski, linguista e professora de Língua Portuguesa.

Carraspana! Carraspana!

Taxar o procedimento como adequado ou indevido é igualmente perigoso. "Assim como traduzir, adaptar é engendrar uma ponte. Em ambos, a ideia é tornar o texto acessível a um público que, ante o original, veria restritas ou inexistentes quaisquer chances interpretativas", alega Gissele.

Os escritores geralmente se dividem. "Não me apetece muito a ideia de ver um livro meu adaptado. Se o público precisa de ajuda para leitura, o que é normal, os recursos de glossário e notas de rodapé deveriam dar conta", considera Adriano Scandolara, tradutor e autor de Lira de Lixo.

Marilza Conceição, presidenta da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infanto-Juvenil (Aelij) no Paraná, aprova as adequações. "Quando li A Moreninha, um personagem chegava à sala gritando: ‘Carraspana! Carraspana!’ Pensei: ‘Mas que diabos é carraspana!?’ Para os jovens, ler o português arcaico não é atraente", admite Marilza.

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