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O cineasta Sylvio Back, editor do Letras & Artes: ontem... | Fotos: Arquivo pessoal
O cineasta Sylvio Back, editor do Letras & Artes: ontem...| Foto: Fotos: Arquivo pessoal
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  • Capa da edição comemorativa fac-similar

Entre agosto de 1959 e março de 1961, circulou aos sábados no extinto Diário do Paraná uma página literária que abalou os alicerces da pachorrenta cultura curitibana. O editor do Letras e Artes – às vezes grafado Letras & Artes –, Sylvio Back, define seus colaboradores como "um misto de jornalistas experimentados e uma dezena de românticos novatos, focas (no jargão da redação), todos indisfarçáveis candidatos a escritor, poeta, críticos de literatura, cinema e teatro, advogado, político, músico, sindicalista e, sem nenhuma coincidência, a cineasta... O comportamento de cada um identificava-se com o estilo dos tempos ideologizados que começavam a se delinear. A democracia sempre fez bem a jornais e jornalistas."

Meio século depois, a página preciosa e polêmica ganha uma edição fac-similar, que será lançada em breve pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Segundo a Secretária da Cultura, Vera Maria Haj Mussi Augusto, a página veio "colocar em xeque a cultura paroquial da época, coincidindo com os belos tempos de liberdade de expressão e artística que coloriam os horizontes do Brasil."

Como um dos colaboradores mais assíduos do Letras & Artes – que veio depois do Joaquim e antes do Nicolau – posso "falar de camarote" sobre sua vibrante trajetória, sem nenhuma intenção de "puxar a brasa para a minha sardinha" ou "botar azeitona na minha empada" – chavões que seriam execrados pela rigorosa modernidade da página. Queríamos mudar o mundo: e por que não começar por Curitiba? Fascinado por jazz, eu estava de ouvidos abertos para a revolução cultural que, inspirada por esta música, o movimento da beat generation iniciava nos Estados Unidos.

Por esta época, eu já colaborava no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (o famoso SDJB, que saía aos sábados). Nele publiquei, em dezembro de 1959, o texto "Jack Kerouac e as Crianças do Bop". Mandei uma cópia para o agente de Kerouac e, para minha surpresa, recebi um cartão de agradecimento do autor de On the Road. Tempos depois, me dei conta de que o cartão foi postado por Kerouac no fim da tarde da véspera de Natal de 1959. O solitário Jack, no auge da fama, não teria nada melhor a fazer do que mandar um cartão para um obscuro escriba de uma obscura Curitiba naquela data tão especial?

Minhas colaborações corriam nesta faixa: "A Veneza de John Lewis" (sobre a trilha sonora do Modern Jazz Quartet para o filme de Roger Vadim Aconteceu em Veneza), "Zen e a Mensagem de Lester Young" (sobre o saxofonista de jazz precursor do estilo cool), "Jaz-poesia: de Homero à Renascença de San Francisco"; e traduções como "Zen e a Arte de Escrever", de Ray Bradbury; "Lua na Ilha de Matsushima", de Matsuo Bashô; "Fome", de Jean Genet. Muitas vezes incorri na ira de nacionalistas e comunistas ortodoxos do tipo Yankee-go-home.

Na verdade, o jazz e os beats que eu incensava eram o que havia de mais radical contra a arrogância e o engessamento ideológico da América reacionária, verdadeiros arautos da contestação global dos anos 1960.

Sylvio Back era nosso grande polemista. Falando de cinema e de teatro, acionava implacavelmente sua metralhadora giratória contra a mesmice e o conservadorismo. Escreveu sobre "O Exotismo de Orson Welles", "A Incoerência do Teatro de Arena", um belo "Ensaio Renovação da Comédia" – sem mencionar que era a cabeça pensante por trás da página, apoiado na diagramação impecável de Emílio Zola Florenzano, tão influenciado pela concepção gráfica do Jornal do Brasil que acabaria paginador deste jornal carioca.

Ainda mais cáustico do que Sylvio, Walmor Marcelino desancava deus-e-todo-mundo em textos como "Bilhete aos Literatos e Críticos Cinematográficos Parvos Maltratam o Cinema". Saquem só o final do "Bilhete": "Tenham coragem de abandonar esse galardão falso para não dar mau exemplo às crianças; não as ensinem com falsidades; não enganem os angustiados que vão criar vida numa arte que é sua, numa linguagem sua, fazendo esta seu instrumento de trabalho para dizer coisas que importam, protestando, gritando, comunicando com os outros homens a sua verdade, radical, necessária e profundamente humana."

Fazendo tabela lítero-ideológica com Walmor, o Luiz Geraldo Mazza contribuía com seus contos compactos, como "qwertyuiop", e poemas como "O Ciclista", dedicado a Jacques Tati: "Eu preciso um novo Dom Quixote/ viajando sobre duas rodas/ para enfrentar com o guarda-chuva/ a despoetização do homem."

No meio de toda a fúria, havia som também, o som suave dos textos de René Dotti, em crônicas sintéticas e elegantes, mas também cortantes, como "Caminho entre o Poema e o Trabalho", "Enquanto os Honestos Dormem", "A Música para Acordar", "A Condução para o Céu". Ouçam o delirante trecho final deste: "Ficam assim abraçados, ela beijando seu pescoço, ele meio sem jeito mas procurando fazer alguma coisa de amor até que o caminhão derrapa, perde a direção e atropela e mata a mulher dele, que procurava alcançá-los em louca corrida. Mas não há mais problemas, porque o homem e sua amante recente continuam abraçados e apesar de mortos vão subindo para o céu."

Claro que houve mais, muito mais, naquela quase centena de páginas, em que vamos poder (re)ler agora, na edição fac-similar, tudo o que se passava nos corações e mentes daqueles que viveram a desafiadora e fascinante transição dos anos 50 para os 60 – para nunca mais esquecer.

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