• Carregando...
McCarthy: autor de "A Estrada" vendeu a máquina de escrever que comprou em 1963 por 50 dólares. | Divulgação
McCarthy: autor de "A Estrada" vendeu a máquina de escrever que comprou em 1963 por 50 dólares.| Foto: Divulgação

"Eu vi um All Star, eu vi um All Star!" A moça na poltrona do cinema atrás de mim realmente tinha visto um All Star, em meio a dezenas de pares de Manolo Blahnik. Normal, fosse o filme uma história contemporânea, mas era Maria Antonieta.

A cineasta Sofia Coppola fez a brincadeira de colocar um par da marca Converse no abarrotado armário mostrado na cinebiografia da rainha guilhotinada. Mas o quê, exatamente, ela quis dizer com esse anacronismo? Antonieta (1755 – 1793) é considerada uma das primeiras fashionistas (fashion = moda; fashionista = quem segue a moda) da história – e o filme vai bem por essa linha.

Um dos motivos da revolta da população francesa em relação à corte eram os excessos de sua rainha. Jóias, fazendas importadas, sapatos, um cabeleireiro particular... A lista de caprichos não acaba... Num filme com apelo pop e adolescente, Sofia deu de ombros aos críticos e afirmou simplesmente que colocou os tais tênis "porque eu pude".

Emma Bovary – protagonista do romance Madame Bovary (1857), de Gustav Flaubert – era uma consumista contumaz. Levou o marido à ruína por causa de seus vestidos, transformando a moda em pano de fundo de sua tragédia particular.

Dois exemplos de como a moda (a palavra moda significa maneira, modo de se vestir) está incrustrada na história – e nas histórias – há muito tempo. "A moda surgiu na Idade Média como componente de distinção de classes", afirma a doutora em História Alessandra Izabel de Carvalho, professora da UniCuritiba. Antes, a indumentária era apenas vista como proteção do corpo. "A roupa era de difícil acesso. Os tecidos, caros, figuravam entre os pertences mais valiosos das pessoas. A vestimenta era uma forma de identificação que apontava a religião, a região, a ocupação e o papel social das pessoas. No século 19, com a industrialização, as roupas se tornam mais acessíveis".

Desde então – quando a roupa passa a ser um bem de consumo de massa –, a moda é um campo fértil para se entender como as pessoas interpretam determinada forma de cultura para seu próprio uso. No século 20, surgem os costureiros – mais tarde chamados de estilistas –, as grandes maisons, as publicações e os fotógrafos especializados em moda. E o lançamento das roupas passa a integrar um sistema, que leva em conta as estações e a produção de indústria têxtil. A moda acompanha os ciclos econômicos e o sonho de vestir-se "na última moda" passa a ser ditado pelo ânimo dos conflitos mundiais: a bainha da saia, a porcentagem de algodão dos tecidos, o náilon da meia das mulheres, a silhueta seca ou ampla...

Significado

É fato que, para a maioria das pessoas, vestir-se não é mero gesto autômato. Toda vez que abrimos o armário pela manhã para escolher uma roupa estamos colocando um significado na maneira com a qual vamos nos relacionar com o mundo. "A moda é generosa e narcisista. Nos vestimos para nós mesmos e para os outros", aponta a jornalista Carol Garcia, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e co-autora do livro Moda é Comunicação: Experiências, Memórias, Vínculos (Ed. Anhembi Morumbi, 2005). Segundo ela, o corpo é a nossa "primeira mídia", seguida da roupa que é uma "segunda mídia", capaz de ampliar a capacidade comunicativa.

Através da roupa posso demonstrar como sou criativo, como quero me diferenciar do outro, como desejo estar em outro lugar (lembram das camisetas do Hard Rock Café?), como quero ascender socialmente (entra aí o gosto pelas logomarcas fake das grandes grifes), como sou livre – ou convencional –, como não estou nem aí com o que os outros vão pensar sobre mim... Com uma roupa, posso até mentir, fingir que sou o que não sou.

Para o estilista curitibano Silmar Alves, essa consciência pelo que representa o vestir é geralmente privilégio de uma minoria, que "se imanta de uma cultura mais aprofundada por causa de seu acesso à informação". Ou seja, são o que chamamos de fashionistas, pessoas que se antecipam às tendências e cujos corpos servem de outdoors a elas. "Quando a maioria, levada pela cultura global, estiver usando o que essa minoria usa hoje, ela (a minoria) já estará em outra." De qualquer forma, a moda passa a idéia de que há uma coesão em torno do que se está usando em determinado momento e de todos os elementos que movem a sua produção. "Hoje, a moda é um fenômeno cultural, quando se observa que as pessoas de vários países sabem o nome de determinada modelo, por exemplo. Até quem não tem dinheiro para consumir conhece os ícones de moda", lembra Alves.

A roupa agora é menos distinção social e mais identificação cultural – queremos vestir as tendências mas precisamos desesperadamente ser diferentes. "Todo mundo quer vestir o que o amigo veste, mas ninguém quer ser clone de ninguém. O que é fashion para mim pode não ser para o outro. Às vezes, olhamos pessoas e não entendemos o seu jeito de vestir, mas para elas e seu grupo aquele modo tem um significado", diz a historiadora Alessandra de Carvalho. Ela lembra que, enquanto no início do século 20 havia uma padronização da moda, agora pode-se pensar num contexto multicêntrico. "As tendências surgem das ruas, dos guetos, do rock... Há espaço para todos."

De volta ao futuro

A moda é uma demarcadora de tempo, funcionando como uma espécie de escrita de uma era. Atualmente, diante de um presente imperfeito – terrorismo, problemas sociais e ambientais –, os criadores de moda vão buscar no passado referências para levar conforto ao consumidor. "Não queremos o futuro que nos é apresentado – de ameaças, como o aquecimento global –, queremos o futurismo metalizado dos anos 60, que nem se concretizou. O vintage é a esperança no futuro ideal, seguro", avalia Carol Garcia.

Nessa fuga da realidade, o movimento espiral da moda também retoma os elementos étnicos e locais. Alguns estilistas brasileiros refletem essa vontade de estabelecer uma ponte entre moda e a cultura do seu lugar. O mineiro Ronaldo Fraga, o cearense Lino Villaventura e aqui, o próprio Silmar Alves, são bons exemplos. Alves já desenvolveu coleções inspiradas na Rua XV e no Vampiro e a Polaquinha (de Dalton Trevisan) e acaba de desfilar uma série de roupas baseadas na frase de Paulo Leminski: "No Rio o mar, em Curitiba o bar". "É uma homenagem aos bares antigos da cidade, onde a introspecção do dia dá espaço à extroversão noturna", comenta o estilista, que reutilizou tecidos na composição das roupas.

É, a moda vive da interpretação e sua sobrevivência exige que os criadores olhem para questões emergentes. As mudanças climáticas e seus desdobramentos farão com que a indústria da moda se reposicione. Métodos de tingimento menos poluidores, fibras não poluentes – como de açúcar, beterraba e milho – e materiais reciclados já são uma realidade para um pequeno nicho de mercado. "O fator preço ainda é predominante, mas há um grupo que se preocupa com isso e é formador de opinião", diz Carol Garcia.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]