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Erasmo e Roberto Carlos: com o parceiro “Tremendão”, compôs mais de 500 músicas | Arquivo
Erasmo e Roberto Carlos: com o parceiro “Tremendão”, compôs mais de 500 músicas| Foto: Arquivo

Turnê histórica

A turnê de Roberto Carlos começou em Cachoeiro do Itapemirim, cidade natal do Rei, acaba em Nova Iorque, mas também passa por Curitiba. Confira alguns destaques das 24 apresentações em 20 cidades diferentes:

- No dia 26 de maio, em São Paulo, acontece o Show Elas Cantam Roberto Carlos, com Alcione, Hebe Camargo, Zizi Possi, entre outras

- Para 11 de julho está previsto o maior show da turnê. Um público de 80 mil pessoas é aguardado no Maracanã

- Curitiba recebe o Rei dias 18 e 19 de setembro no Teatro Positivo

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A transformação de um músico em mito conversa com a história recente do país. Roberto Carlos tornou-se um espelho e um resumo de sua própria gente.

Gazeta do Povo – Por que RC virou Rei?

Pedro Alexandre Sanches – Em primeiro lugar, acho que cabe questionar se essa alcunha de Rei faz algum sentido no duro. Às vezes acho que não, com essa cara de "plebeu" que ele tem... Acho que ele virou Rei dos brasileiros por ter tanta cara de plebeu quanto qualquer brasileiro típico. Quem poderia ir para esse nosso trono? Villa-Lobos? Tom Jobim? Não, não tem páreo para Roberto Carlos. E, na minha opinião, a força dele vem daí, do fato de ele ser, sozinho, um resumo de tudo que nós brasileiros somos, gostemos disso ou não.

Ele é um possível retrato do Brasil recente?

Acredito que sim. Meu livro sobre ele saiu em dezembro de 2004, quando o governo Lula não estava muito delineado ainda. Mas eu terminei o livro comparando Roberto Carlos e Lula: a perna que um perdeu no trilho do trem e o dedo que o outro perdeu na fábrica. O chamado escândalo do mensalão aconteceu pouco tempo depois, e me baqueou bastante. Inúmeras vezes eu pensei: "ih, escrevi tudo errado". Mas passou mais tempo, e devo dizer que me sinto feliz com o grau de empatia e popularidade do presidente, que não deixa de ser bem parecido com a do Rei. Quer dizer, embora o Roberto disfarce isso muito mais do que o Lula, a mítica deles é mais ou menos a mesma, o cara simples, de origem pobre, interiorana e marginal, que vem a governar um país inteiro.

O fato de ele ter deixado a rebeldia "yeah yeah yeah" de lado em troca do romantismo (quase brega?) contribuiu para que fosse "adorado" por tantas gerações?

Contribuiu sim, e, quando ele teve essa percepção, adotou um comportamento que deu o tom para a força impressionante da música popular na década de 1970. Estou pensando em Odair José, Diana, Waldick Soriano, Núbia Lafayette, um grupo enorme de artistas também popularíssimos, embora muito menos respeitados que Roberto pelas ditas cabeças pensantes (o que não quer dizer que ele fosse exatamente respeitado e admirado nesse círculo). Como o Paulo César de Araújo mostra brilhantemente no livro Eu Não Sou Cachorro, Não, esses artistas todos foram muito hostilizados, supostamente por serem românticos, açucarados ou cafonas, mas o que havia por trás disso era muito mais preconceito de classe do que apreciação (ou reprovação) estética. O som de Roberto Carlos e dessa turma toda era o som dos brasileiros reais, ao mesmo tempo, era o som da ditadura e o som dos mais oprimidos pela ditadura.

Quanto o rock brasileiro deve a RC?

Deve muito, porque RC foi roqueiro dos bons nos anos 1960. Embora essa fase dele já seja mais bem aceita, eu nunca deixo de sentir que há restrições a ela também e à Jovem Guarda de um modo geral. O que era xingado de "alienado" nos anos 60 hoje fica lá a distância, como algo singelo, ingênuo e infantilizado demais. Mas, ora, vá traduzir qualquer rock dos Beatles na fase "yeah yeah yeah" e me diz se não são tão bobos e desmiolados quanto qualquer letra de Jovem Guarda. O legal é que esse outro preconceito nunca disse muito para os artistas menos pedantes daquela turma dos anos 1980 – tem quilos de Roberto e Erasmo no som da Blitz, do Ritchie, do Ultraje a Rigor, do Kid Abelha, do Leo Jaime... E, mesmo quando houve outra guinada forte, nos anos 1990, rumo à recuperação do regionalismo e da brasilidade do rock, lá estava o Roberto Carlos, sendo citado e reverenciado por Chico Science, Skank, Carlinhos Brown, Marisa Monte...

Foi fácil para ele migrar do rock para as canções românticas?

Não saberia dizer se foi fácil ou difícil, mas me arrisco a afirmar que foi muito sofrido. Nessa transição, foi hostilizado por Elis Regina, Geraldo Vandré e a MPB quase inteira, aturou passeata contra a guitarra elétrica, foi vaiado em festival, patrulhado por se casar com uma mulher desquitada, tentou combater a cegueira progressiva do filho recém-nascido, foi tido como "transviado" pelo lado direito e como "alienado" pelo lado esquerdo. Antes de virar um "romântico" de carteirinha, teve aquela transição que já era romântica, mas, mais do que tudo, era "negona", influenciada pela soul music, num tempo em que o racismo brasileiro caiu matando em cima de Wilson Simonal, Toni Tornado e outros. Fácil, fácil, não foi, né? Ainda mais naquelas de querer (será que queria?) virar o Tony Bennett ou o Frank Sinatra brasileiro.

RC conseguiu se inserir nos diversos contextos sociais em que viveu e talvez modificá-los, mesmo se dizendo apolítico?

Conseguiu. De novo, eu não apostaria que ele tivesse consciência disso, mas seguiu a vida inteira a estratégia – política em alto grau, na minha opinião – de se afirmar apolítico. É nítido que RC era "o" cara do establishment, da Globo, da ditadura, e que, ao se dizer apolítico, ele arrastava junto uma multidão de supostos apolíticos. Ele era utilíssimo para o poder instalado aqui, e nesse sentido virava facilmente ferramenta de propaganda (a)política de governos, aparelhos repressores e redes hegemônicas de TV. No meio disso, uma vez ou outra ainda fez, com muito medo, muita timidez, muita voz baixinha, uns manifestos rebeldes ao status quo, tipo "Namorada de um Amigo Meu", "Eu Sou Terrível", "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos", "Todos Estão Surdos", "Negra", "O Quintal do Vizinho".

E a história da perna mecânica...?

Putz, pois é... É chato, porque essa história vira um pretexto para alguns dos atos mais agressivos dele, como quando conseguiu censurar a série do "Notícias Populares" que tocava no assunto. Mas tem aquela canção, "Traumas", que acho que diz muito mais sobre a marca profunda que isso deve significar. Já pensou que talvez ele seja um cara que se autoproíbe de ir à praia ou à piscina por conta disso? No meu mundo ideal, eu sonho com o dia em que o Brasil vai estar tão assumido, nas suas virtudes e nos seus vacilos, que o Roberto Carlos vai posar na capa de uma revista como ele é de fato, sem a parte mecânica, como alguns atletas às vezes costumam fazer. Aposto que ia calar a boca de todo mundo, ia acabar com todas as piadas e gracinhas. Mas, bem, como sambaria a dona Ivone Lara, "sonho meu... sonho meu...".

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