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A produtora desce a R. São Francisco, onde se instalou com a CiaSenhas, e planeja uma intervenção: “A gente olha para ela (a rua) e pensa o que vai fazer” | Valterci Santos/Gazeta do Povo
A produtora desce a R. São Francisco, onde se instalou com a CiaSenhas, e planeja uma intervenção: “A gente olha para ela (a rua) e pensa o que vai fazer”| Foto: Valterci Santos/Gazeta do Povo

Enquanto Márcia Moraes conta sua história à reportagem da Gazeta do Povo, no segundo andar da nova sede da CiaSenhas, instalada na quadra inicial da maltratada Rua São Francisco, no centro velho da cidade, a diretora Sueli Araújo e os integrantes da companhia a aguardam no piso inferior para começar um ensaio. Márcia não aparecerá no palco, suas aspirações como atriz ficaram para trás, mas, como produtora do grupo, está envolvida desde o gérmen de cada projeto até a confecção final, que, se depender dela, terá tantos desdobramentos quantos forem possíveis.

Essa relação íntima, interna e contínua com o fazer criativo da companhia, diversa de um contrato guiada pelo esquema de mercado que rege os produtores tradicionais, a deixa em crise com a palavra "produtora". A atuação de Márcia, de fato, vai além do que se costuma compreender diante do termo. Está mais para a de uma agitadora cultural, interessada em "mexer com a cidade", e, por isso mesmo, determinante na vida teatral curitibana alheia às realizações estritamente comerciais. A Mostra Cena Breve (encerrada na segunda-feira) e o Movimento de Teatro de Grupo, duas ações que encabeça em companhia de seus pares, atestam sua parcela de responsabilidade na recente movimentação da cena local.

Hoje, as preocupações dessa mulher de 40 anos que se diz "meio obsessiva pelo trabalho", se concentram em pensar as políticas públicas para o teatro, as possibilidades estéticas da maquiagem – outra função de bastidores com a qual se envolveu, tornando-se professora da Faculdade de Artes do Paraná e mestre no assunto pela Universidade Federal da Bahia – e o próprio fazer teatral, articulado com a cidade e acessível a todo o público. Tudo isso, no entanto, estava longe dos planos da garota que abandonou as festas de carnaval que movimentavam os 20 mil moradores da pequena Joaçaba, no interior catarinense, aos 16 anos, deixando os pais, dois irmãos, avôs e tias, para estudar na capital do estado vizinho.

Veio morar no tradicional pensionato de freiras da Rua Emiliano Perneta – destino comum a garotas interioranas que precisam (elas mesmas ou seus pais) se sentir protegidas na cidade grande. Tinha planos de seguir carreira no Direito, movida pelo desejo de abraçar quantas causas pudesse, a mesma ânsia que a fizera freqüentar desde os 13 anos as passeatas pelas Diretas Já. A faculdade, porém, se revelou uma decepção. "Não consegui encontrar ali os meus pares. Vi toda uma sociedade estabelecida, conservadora". Antes mesmo de se formar, traçou um caminho paralelo na quarta turma do curso de Artes Cênicas da PUC, onde também estudavam Sueli Araújo, Olga Nenevê e Eduardo Giacomini.

Angústias e desejos compartilhados aproximaram os quatro mais tarde, quando trabalhavam na escola Cena Hum. Era 1998 e a insatisfação com a necessidade de esperar por um convite para participar de uma montagem os impulsionou a proporem seus próprios projetos, fundando a CiaSenhas.

A essa altura, dois destinos se insinuavam a Márcia. A interpretação, experimentada anteriormente em dois espetáculos dirigidos por Paulo Biscaia – Madame Butterfly e A Máscara da Morte Vermelha – e a produção, praticada em seu primeiro emprego no Teatro Guaíra, com montagens do Teatro Brasileiro de Comédia, forte na época. "O perfil na cidade era fomentado pelo Guaíra, que convidava o diretor, selecionava o elenco por teste. Alguns fizeram sucesso enorme, filas na frente do Guairinha, como New York por Will Eisner, do Edson Bueno, e As Bruxas de Salem, do Marcchioro. Mas as pessoas se reuniam para uma produção e na seqüencia se desfaziam", lembra.

Escolha

A CiaSenhas, na contramão dessa rotatividade, estreou em 1999 com a peça Alencar, na qual Márcia interpretou seu último papel, Ciro, e pelo qual foi premiada como melhor maquiadora em São José do Rio Preto e pelo Troféu Gralha Azul. Foi seu momento de optar entre empregar seu fôlego como atriz ou como produtora. Não que as duas atividades fossem irreconciliáveis, a não ser para personalidades que mergulham inteiramente no que fazem. Esse, entretanto, era exatamente o caso, e a escolha se impôs, como um teste em cena, em que perdeu o lado intérprete, mais sofrido – e do qual não sente saudade –, para triunfo do racional, de incessantes projetos.

Olga e Giacomini deixaram a CiaSenhas em 2002, para seguirem outro rumo de pesquisa na sua própria companhia, a Obragem. "A gente teve uma grande parceria estética. Fizemos espetáculos que estão na nossa história, como Devorateme (2001), uma síntese das nossas afinidades estéticas e ideológicas, que teve uma grande repercussão. Fez temporada no (Teatro) José Maria, na Casa Vermelha, depois voltamos no Festival, com casa lotada, e levamos muita gente da periferia para ver".

Esse envolvimento com a comunidade é algo de que sente falta no teatro curitibano. "No debate de segunda-feira (no encerramento da Mostra), teve muito essa questão de como Curitiba não ocupa os espaços públicos, as pessoas não fazem teatro na rua, intervenção, manifestação. É uma coisa que nos provoca o tempo todo na companhia. Essa escola aqui na frente (o CEAD), de educação de jovens e adultos, todas as quintas e sextas-feiras levava os alunos para assistir ao espetáculo Delicadas Embalagens, eles viam os ensaios (pela janela), viravam as cadeiras para cá. A gente tem a necessidade de que todas as pessoas possam ver, se divertir, refletir e se comunicar com o que a gente está fazendo".

Sua primeira aproximação com a arte, por meio do carnaval de Joaçaba, explica em parte a importância que dá ao envolvimento da comunidade. "O carnaval, dentro de uma cidade pequena, é isso: a comunidade que faz parte daquela escola coloca aquilo de pé, fica noites inteiras sem dormir fabricando as fantasias. Lembro de uma coisa que sempre me emocionou muito, as senhorinhas que limpavam as ruas. Elas compunham a ala das baianas. Ver aquelas senhoras no dia vestindo roupas de baiana e tendo a possibilidade de entrar e participar é uma coisa que sempre me comoveu". Durante algum tempo, já morando em Curitiba, Márcia ia à cidade natal fazer a maquiagem da comissão de frente. Precisou parar por falta de tempo e não se anima a participar da festa paranaense. "Até agora, o que eu vejo é que o carnaval não é uma vocação curitibana", diz aos risos.

O que é uma vocação curitibana, na sua opinião, mas nas palavras de Neuza, a esposa de Tom Zé, é a timidez. "Fala-se tanto que o curitibano é arrogante, mal-educado, tem dificuldade de se comunicar, mas talvez seja uma grande timidez, que nos torna muito fechados nos espaços e nas nossas criações. Vejo Curitiba como um grande potencial e uma grande timidez. As coisas vêm pequenas, fechadinhas, bonitinhas, mas a gente faz muito, tem grandes artistas em todas as áreas". Márcia luta a favor do potencial, movida pelas possibilidades de fazer novas parcerias, promover o encontro entre artistas, e entre a arte e o público.

Mudança

Parte do seu impulso de realização se deve a uma mudança no cenário teatral – não apenas curitibano – desde a década de 1990, quando surgem, em São Paulo, muitos grupos interessados em buscar uma linguagem própria e aprofundá-la em um trabalho contínuo. "Estudo, monto um espetáculo, observo isso... Os grupos de artistas não conseguem mais produzir num formato de dois meses de ensaio e um de apresentação, recusam isso, apesar de a maioria das leis de incentivo trabalharem assim. Não dá tempo de ter uma unidade de interpretação, equalizar o elenco."

O lado positivo, para ela que criou há dois anos o Núcleo de Produções com Greice Barros, trazendo grupos teatrais de fora à cidade, como o Galpão e a Luna Lunera (e trabalhando com música, em outra frente), é a diversidade de linguagens que desponta nesse cenário e encontra modos de convívio, ao mesmo tempo que se ampliam os espaços que sediam companhias e podem vir a receber o público, como o próprio prédio da Rua São Francisco, que abrigou debates durante a Mostra Cena Breve.

Por enquanto, o público está convidado a ver do que consiste o trabalho de Márcia e da CiaSenhas na terça-feira (19), quando as pesquisas de atuação e dramaturgia propostas desde fevereiro pelos atores, baseados em notícias lidas no jornal, serão apresentadas na Casa Hoffmann, às 19h30.

Em março do próximo ano, Delicadas Embalagens volta ao cartaz durante o Festival de Curitiba. Antes disso, é provável que Márcia se conceda um pouco de férias, em um lugar como as praias do sul da Bahia, que tanto a agradam, como uma necessária pausa na rotina de imersão no trabalho, que lhe ocupa quase todo o tempo, às vezes sem poupar cafés-da-manhã, almoços ou jantares. "Isso toma a minha vida inteira!"

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