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David Sedaris: livro medíocre em que poucas crônicas se destacam – numa delas, ele lembra sua infância | Divulgação
David Sedaris: livro medíocre em que poucas crônicas se destacam – numa delas, ele lembra sua infância| Foto: Divulgação

Nova Iorque - "Às vezes ajuda me lembrar que nem todos são como eu," escreve David Sedaris em sua decepcionante nova coletânea de ensaios, Engolido pelas Labaredas.

"Não é todo mundo que anota observações em um caderno para depois transcrevê-las num diário. Pouquíssimos ainda pegariam esse diário, reescreveriam algumas partes tirando o excesso e as leriam em frente a uma platéia."

Tal fórmula básica tanto para suas crônicas quanto para seu popular programa de rádio (exibido apenas nos EUA) fizeram de Sedaris um autor de best sellers com um enorme séquito de seguidores, e sua escrita parece refletir perfeitamente uma cultura confessional que se delicia com revelações de cunho pessoal – uma cultura de talk show pós-Seinfeld, que se autodramatiza e na qual nada (nem mesmo as assaduras no traseiro de alguém ou o uso de um cateter com o auxílio de uma camisinha autoadesiva) é constrangedor demais ou demasiado íntimo ou trivial para se relatar.

Na verdade, Sedaris é como um comediante de stand-up, examinando suas experiências diárias (assim como a de seus familiares e amigos) em busca de pérolas cômicas para poder dissecar e polir – ou ainda exagerar e melhorar – até se tornarem anedotas brilhantes, para então apresentá-las com sua prerrogativa de intérprete, para seus espectadores. Praticamente tudo que faz parte de sua existência, ao que parece, rende algum tipo de material e é bem-vindo: miúdo para encher linguiça, sobras e restos para servir uma gororoba mista.

Em seu livro de 2004, De Veludo Cotelê e Jeans (Companhia das Letras), Sedaris mostrou sinais de que estava transcendendo essa fórmula: as melhores histórias daquele volume (como aquela em que memórias sobre uma velha casa de verão suscitam uma tocante meditação sobre tempo, idade e perda) sugeriam que o autor estivesse evoluindo de escritor cômico para um memorialista estabelecido. No entanto, não se encontra muito dessa introspecção chekhoviana em Engolido pelas Labaredas. E ainda muito pouco do humor charmoso e autodepreciativo que fez boa parte de seu material antigo tão popular entre ouvintes e leitores.

Como sugere a imagem que ilustra a capa do livro (um crânio fumando um cigarro, na edição norte-americana), muitas das crônicas são distintivamente – e até assustadoramente – de mau gosto. Um dos capítulos detalha a fascinação de Sedaris por cadáveres (quando menino, ele narra, costumava cavar corpos de animais de estimação mortos, após enterrá-los) e apresenta uma viagem bem ao estilo CSI a um necrotério, na qual Sedaris assiste a um legista retirar vermes da espinha de uma vítima e aprende que "se você salta de um edifício muito alto e cai de costas no chão, seus olhos irão saltar de sua cabeça e ficar pendurados por fios ensanguentados."

Outro capítulo relata suas histórias de caroneiro. Numa delas, diz ter sido aliciado por um homem e sua esposa negligenciada, em outra, por um caminhoneiro que não parava de falar em sexo oral. Uma terceira diz respeito a um vizinho seu na França que foi preso por ter molestado os netos de sua esposa.

Por isso mesmo, muito dos conhecidos que Sedaris descreve em seu livro – e descreve de maneira caricatural, como se estivesse apressado demais para poder prover qualquer nuance ou detalhe emocional – são decididamente companhias desagradáveis.

Há uma vizinha chamada Helen, que gosta de gritar apelidos e insultos raciais às pessoas e que vive em um apartamento em Nova York "como se fosse da polícia secreta, sempre a espreita, fazendo anotações". Também um motorista de táxi nova-iorquino que, de modo inconveniente, se vangloria de aventuras sexuais com duas mulheres, e ainda Becky, uma colega de poltrona num avião que dá um gelo no autor após ele ter se recusado a trocar de lugar com o marido dela.

Em muitas dessas crônicas o leitor tem a sensação de que Sedaris está cavoucando o fundo do barril em busca de material, escrevendo apenas por escrever, ostentando tempo ao invés de olhar para dentro ou tentar algo novo. Seus esforços para aprender japonês em uma das crônicas lembram suas antigas tentativas de aprender francês. E seus esforços em ridicularizar o nível educacional de renomadas instituições de ensino americanas são dignos de pena: para maximizar o entusiasmo de seu pai sobre o autor ter sido aceito em uma delas, ele escreve, "Anunciei que me formaria em ‘parricídio’ (nome legal para o ato de matar o próprio pai). O programa de Princeton era bastante popular naquela época, o melhor do país, mas não era o tipo de coisa que faria seu pai se empolgar demais".

Os trechos sobre a própria vida de Sedaris tendem a deixar o leitor pensando que ele simplesmente tem tempo de sobra. Ele escreve sobre completar palavras cruzadas, construir espantalhos com capas de discos para assustar passarinhos que vivem batendo em sua janela, encontrar meios de aprisionar moscas vivas para dar de comer às aranhas de sua casa de campo na França. Achar o presente certo para seu namorado, Hugh, leva tempo, assim como para parar de fumar, já que ele alugou um apartamento em Tóquio para o ajudar no processo – ou para render algo sobre o que escrever.

Felizmente para os fãs do autor, ainda se salvam algumas preciosidades nesse volume, entre as mais notáveis, está uma descrição de outra viagem aérea na qual Sedaris se depara com uma viúva em luto, assiste a um filme de Chris Rock e é repentinamente lembrado de sua própria infância 40 anos antes; assim como no texto em que descreve o empenho de seus pais para se tornarem colecionadores de arte. Esses ensaios não apenas se destacam em um livro incrivelmente medíocre, como também lembram o leitor daquilo que Sedaris é capaz quando se esforça.

Serviço:

Engolido pelas Labaredas, de David Sedaris. Companhia das Letras, 312 págs., R$ 49.

Tradução de Miguel Nicolau Abib Neto

* * *

"Durante um voo para Raleigh, eu espirrei e a pastilha expectorante que estava chupando pulou da minha boca, ricocheteou na bandeja do assento e aterrissou, segundo me lembro, no colo da mulher ao meu lado, que dormia com os braços cruzados no peito. Fiquei surpreso por ela não ter sido acordada pelo impacto – tal foi a força do choque –, mas ela só tremulou as pálpebras e soltou um pequeno suspiro, do tipo que se ouve de bebês. Em circunstâncias normais, eu teria três escolhas – e a primeira delas seria não fazer nada. A mulher iria acordar no devido tempo e perceber o que parecia um pequeno botão brilhante costurado na braguilha de sua bermuda."

Trecho de Engolido pelas Labaredas, de David Sedaris, traduzido por Claudio Carina

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