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Carlos Heitor Cony lançou seu primeiro livro em 1958, aos 32 anos de idade. Quando publicou seu nono trabalho, Pilatos, em 1973, anunciou que nunca mais escreveria outro romance. Nunca mais por quase 23 anos. Em 1995, inspirado pelas lembranças do pai, produziu Quase Memória, considerado o melhor romance e o livro do ano segundo o Jabuti, o prêmio mais importante do Brasil, dado pela Câmara Brasileira do Livro. Desse ponto em diante, consolidou sua carreira literária, conquistando o prêmio Machado de Assis em 1996 pelo conjunto da obra, o Prêmio Nacional Nestlé de Literatura por O Piano e a Orquestra e outros dois Jabutis em 1997, de melhor romance e livro do ano, por A Casa do Poeta Trágico.

Eleito para a cadeira número três da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono foi o poeta gaúcho Artur de Oliveira (1851 – 1882), Cony é um escritor versátil. Produz textos para crianças, jovens, banca traduções – a mais recente é de um dos contos do livro Menina de Ouro, de F. X. Toole, que inspirou o filme homônimo de Clint Eastwood –, adaptações de clássicos de Dostoievski, Dumas, Verne e Twain, e não hesita em trabalhar sob encomenda, o que levou à fama de "escritor mercenário".

Com Tijolo de Segurança (1960) e Balé Branco (1966), a Objetiva começou a reedição de todos os 15 romances de Cony, que chegou à escrever uma carta ao Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, explicando os motivos de sua saída. O escritor prepara outros dois livros – Missa para o Papa Marcello, a esperada continuação de Informação ao Crucificado, e um romance ainda sem título que pretende, por meio de um enredo absurdo, responder à crítica que exige coerência dos romancistas.

No último dia 15, Cony esteve em Minas Gerais para o 3.º Congresso Internacional de Educação, onde falou sobre suas experiências como leitor, iniciadas pelo Tarzan de Edgar Rice Burroughs. Na entrevista a seguir, concedida minutos após sua palestra, o imortal e ex-seminarista fala sobre o papel do escritor no Brasil de hoje, conta que os 23 anos que passou sem publicar livros foram essenciais à sua formação e fala a respeito do Papa Bento 16.

Gazeta do Povo – Conversamos durante um congresso de educação cujo tema é a leitura. Por vezes, ela é tratada como a resposta para todos os males, "vamos fazer as pessoas lerem que o mundo se tornará um lugar melhor". O senhor concorda?Carlos Heitor Cony – São duas coisas separadas. A leitura faz um mundo melhor. Agora esse mundo melhor não é, necessariamente, um mundo de Hollywood. Não é aquela fantasia estéril, cheia de balangandãs, papel crepom e holofotes. É um mundo melhor em que a pessoa tem um conhecimento maior de si mesma e do próximo, e faz tudo para que a sociedade seja mais justa e mais equilibrada. A humanidade com a leitura tende a ser melhor, mas não pode se libertar de seu legado humano essencial, que é a sua destruição, a dor física, a morte. Enquanto prevalecerem esses sintomas, enquanto não for descoberto o elixir da vida eterna, o último ato do homem é sempre negativo.

Há quem diga que o conhecimento é um processo doloroso e não, um prazer.O conhecimento, em si, não é um prazer. Ele abre caminho para outro tipo de prazer. Quando você conhece mais, percebe toda sua fragilidade e toda a complexidade da vida social. Evidentemente, isso não é uma coisa prazerosa. O que é prazeroso é o ato da leitura em si. Agora mesmo, acabei de ler um livro, traduzido por vários autores – inclusive eu –, Menina de Ouro. É um livro muito bem escrito, mas com uma carga, para mim, altamente repugnante. Da violência física, de um homem atacar outro. É triste.

O senhor viu o filme?Não, não vi. Mas a leitura do livro, para mim, foi muito prazerosa. A linguagem dele me fascinou, desde Faulkner e Hemingway, eu nunca vi nada parecido. Agora, o conteúdo do livro, altamente repugnante.

Existe algum escritor na literatura brasileira dos últimos 50 anos que possa se equiparar ao Machado de Assis?Ao Machado de Assis, não. Mas temos escritores importantes – Guimarães Rosa seria um deles, pelo território mágico que incorporou à literatura brasileira.

Qual acontecimento de sua vida que o definiu como escritor?Por mais que pareça incrível, foi o período de 23 anos que passei sem escrever. Foi talvez o tempo em que eu mais fiquei escritor. Pelo seguinte: eu não escrevia, mas vivia. E essa vida que eu vivi nesses 23 anos sem escrever me deu energia e motivos para escrever, logo em seguida, seis romances, que eu considero, até certo ponto, os melhores da minha obra.

A sua disposição de fazer de tudo na literatura é tida como uma atitude mercenária. O senhor já ouviu esse tipo de crítica?É uma visão amadora da literatura. O escritor é, realmente, um trabalhador. Tem que ser um profissional e o profissional se submete às leis de mercado. Balzac foi mercenário nesse sentido, Flaubert, Tolstói, todos eles foram. Euclides da Cunha escreveu Os Sertões sob encomenda. A renascença italiana é toda feita de encomendas, não escapou ninguém. Niemeyer fez Brasília de encomenda. A gente pode citar o T. S. Eliot, considerado o maior poeta do século 20, que escreveu uma peça – Assassinato na Catedral – sob encomenda da diocese de Londres, para poder se batizar na igreja católica. Por sinal, a melhor peça dele, embora seja mais conhecido pelo poema "Terra Desolada". Há uma visão amadorística de que o escritor deve ficar à disposição, pensando na morte da bezerra, e vir com a inspiração para escrever maravilhas. Primeiro, a morte da bezerra, até hoje, não inspirou nada, só porcarias. A grande literatura é feita a pedido das editoras ou do mercado.

Uma pergunta ao jornalista Cony: se falou muito nessa história do off revelado pelo Diogo Mainardi na revista Veja. O senhor acompanhou a discussão?Lembro vagamente. É umas de jornalismo. Eu por exemplo, detesto off. Eu não aceito nenhum off. Se você disser: "vou fazer uma revelação em off, fui eu que matei o Kennedy", eu não vou tomar conhecimento. Está entendendo? Não vou. Também não me comprometo. Se a pessoa pede off, em princípio, eu não acredito. Se não tem coragem de assumir o que está dizendo, para mim, não merece crédito. Pode dizer para outro. Agora, cada um administra isso como quer.

O senhor acha que essa é a pior crise política do Brasil ou houve piores?Houve o Getúlio. A da República.

Mas a atual é feia, não?É mais de oba-oba. Os meios de comunicação são mais ativos – existe televisão, internet, uma porção de recursos audiovisuais. E ela (a crise) faz muito barulho. Mas, no fundo, está se discutindo a corrupção de algumas pessoas e não uma coisa estrutural. É uma crise horizontal, não é uma crise vertical.

Qual é o papel que o escritor deve desempenhar hoje no Brasil?É escrever. Pode parecer uma coisa banal, um trocadilho, mas a função do escritor é escrever. Dar seu testemunho. Transmitir para os outros a sua visão de mundo. Certo ou errado, ele tem direito. Aquilo que eu falei ainda há pouco na minha palestra: pegar a garrafa, botar sua mensagem e soltar no oceano. Essa é a função do escritor. Ele não pode ficar isolado, marginalizado, em uma torre de marfim, esperando o momento propício, esperando que o mundo todo venha cair aos pés dele. Isso tudo é seqüela, é posterior, pode vir, pode não vir. O importante para o escritor é dar testemunho do seu tempo e da sua experiência de vida.

O que o senhor achou da escolha do cardeal Joseph Ratzinger (hoje Papa Bento 16) para o papado?Era mais ou menos óbvia. Eu achei óbvia. Ele já tinha um poder muito grande e uma linha conservadora. A igreja tem que ser conservadora. O dia em que ela deixar de ser conservadora, renega o passado dela. Porque, segundo a igreja, muita coisa no mundo é para se conservar mesmo. Não se pode jogar a história no lixo de uma hora para outra. Evidentemente, se deve melhorar, corrigir os erros, mas não jogar no lixo e começar tudo do zero. Quando Deus, lá atrás, descobriu que a humanidade estava errada e resolveu mandar o dilúvio, foi uma medida radical, certo? Acabou com tudo. E não adiantou nada. Tudo voltou a ser como era antes. Deus mandou o dilúvio, mas deveria ter preservado não apenas Noé, mas muita coisa de bom do tempo pré-Noé. Jogar a história de uma vez só no lixo, em bloco, é um erro. Então tem que haver entidades que sejam conservadoras e outras que sejam liberais – no sentido de fazer experimentos. Pelo fato de estar experimentando não quer dizer que está certo. Existe muito cientista louco que vai para o porão, faz uma mistura qualquer e explode tudo. "Ah, revolucionário!", mas qual é o resultado? É o caos. É o caos.

Se o senhor pudesse indicar um de seus livros a alguém que nunca leu nada seu, qual seria? Acho que Pilatos.

Por quê?Porque é o livro mais meu.

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