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Ilustração do pintor, desenhista e gravador Glauco Rodrigues (1929-2004) para a edição de número 36 da revista Senhor, publicada em fevereiro de 1962 | Glauco Rodrigues
Ilustração do pintor, desenhista e gravador Glauco Rodrigues (1929-2004) para a edição de número 36 da revista Senhor, publicada em fevereiro de 1962| Foto: Glauco Rodrigues

Antologia

O Melhor da Senhor

Edição de Ruy Castro. Imprensa Oficial de São Paulo. 520 págs., preço a definir.

A capital do país mudou para o Planalto, mas os cariocas não tomaram conhecimento. Quando surgiu a sigla da construtora de Brasília, Novacap, eles batizaram sua cidade de Belacap, e capital da beleza nacional ela continuou sendo – e também da inteligência. A beleza se media nos badalados concursos de Miss. Já o talento intelectual desfilava na passarela de uma nova revista, lançada em março de 1959. Sediada no Rio, ela começou com o logotipo SR., a palavra SENHOR inserida verticalmente na perna do R, e o lema "Uma revista para o senhor". Seu modelo era mais a tradicional Esquire do que a Playboy, que estourava no mercado dos EUA. Senhor tratava de elegância, etiqueta, política, economia e literatura (publicando contos e crônicas), mas não deixava de ter um olho arregalado também para mulher bonita, embora não exibisse corpos nus como alcatra num açougue, A tônica da Senhor (o logotipo passou a aparecer por extenso a partir de abril de 1960) era o bom gosto e a sofisticação. Formulava um estilo de vida para o novo homem brasileiro que emergia do desenvolvimentismo de JK. Eram tempos vibrantes: bossa nova, cinema novo, sputnik, revolução cubana, beats, cool jazz — e, claro, revolução sexual. Todos esses temas encontravam espaço nas páginas da Senhor. O aquecimento do mercado garantia um respaldo publicitário para manter a Senhor nas bancas todo mês, com anúncios de moda, automóveis, eletrodomésticos, linhas aéreas. Foi uma bela aventura cultural que durou até janeiro de 1964, um total de 59 edições, que têm sua memória resgatada agora pela antologia facsimilar O Melhor da SR, ideia e coordenação de Maria Amélia Mello, organização de Ruy Castro (520 páginas, Imprensa Oficial de São Paulo). Revejo com satisfação e – por que não? – orgulho, minha assinatura no ensaio em página dupla "Os Moralistas Corruptores", que a Senhor publicou em outubro de 1962, quando eu já estava em Londres, trabalhando na BBC.

Meu trampolim para a Senhor foi o SDJB. Graças a Nelson Coelho, minha "conexão zen" em São Paulo, publiquei meus primeiros artigos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que saía aos sábados. (Um dos textos no SDJB, sobre Jack Kerouac, me valeu um cartão postal do autor de On the Road, em 1959, a única correspondência de Kerouac com um brasileiro.) Em 1960, numa promoção da Esso, fui indicado pela Gazeta do Povo para um estágio no Diário Carioca. Aproveitando a estada no Rio, visitei a redação da Senhor em Copacabana, no alto da Rua Santa Clara, 344. Passaria por lá de novo em 1962, entre uma bolsa de estudos em Paris e um emprego em Londres. Entreguei a Paulo Francis a tradução que eu tinha feito do conto de J.D. Salinger, "Um Dia Perfeito para Peixebanana". (Francis publicou o conto de Salinger em julho de 1962, mas omitiu o crédito da tradução.) Lembro do meu primeiro contato com a equipe — estelar, mas simpática e cordial. Reynaldo Jardim, mestre da diagramação que criou os revolucionários espaços em branco no Jornal do Brasil; Bea Feitler, bonita e sofisticada, que foi brilhar em Nova York em Harper’s Bazaar, Vanity Fair e Rolling Stone; Nahum Sirotsky, diretor do início da Manchete; Cláudio Mello e Souza, poeta neoconcreto; Luiz Lobo, um dos melhores textos de nossa imprensa. Cito aqueles que frequentavam a redação e que conheci pessoalmente. Os colaboradores eram uma plêiade que fez história no jornalismo e na cultura brasileira: Drummond, Clarice, os Ottos (Lara Resende e Maria Carpeaux), Ferreira Gullar, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Antônio Callado, Antônio Maria, Tom, Vinicius e por aí vai. Foi na Senhor que Jorge Amado publicou em primeira mão a novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água; e Guimarães Rosa o conto "Meu Tio, o Iauaretê". O aspecto visual da revista marcou época, com artistas plásticos como Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, o cartunista Jaguar e fotógrafos como Armando Rozario, Flávio Damm e Fulvio Roiter.

Eu estava no Rio em 1960 quando Jorge Amado organizou o Festival do Escritor. Jean-Paul Sartre lançou o livro Furacão sobre Cuba e passei horas agradáveis na fila quilométrica em companhia dos novos amigos da Senhor. O Festival Sartre & Simone no Brasil durou mais de dois meses. Na palestra do autor de A Náusea, na Faculdade Nacional de Filosofia e Letras, quem roubou o show foi um colaborador da Senhor, o romancista Carlos Heitor Cony, que provocou Sartre com a pergunta: "Por que o senhor não se suicidou aos 35 anos?" Referia-se ao conceito sartreano da "idade da razão". Sartre fuzilou Cony com seu olhar zarolho, mas deu uma resposta ponderada e filosófica. Falando hoje sobre a revista, Cony lembra: "Eu trabalhava no Correio da Manhã, um jornal sério. Na Senhor tinha mais liberdade para escrever. Foi uma época que me deixou muita saudade."

Não só você, Cony: a Senhor deixou saudades nas dezenas de jornalistas que passaram por suas páginas brilhantes.

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