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Tolstoi, em seu último romance, Hadji Murad, descreve o personagem central como um homem extremamente paciente. Dá a idéia do tipo ao relatar como são suas conversas. O personagem, da Rússia oriental, sempre espera seu interlocutor terminar as frases antes de dizer qualquer coisa. Mais do que isso: dá alguns segundos a mais para ver se a outra pessoa não quer voltar a falar. Só depois disso, calmamente, dá a sua resposta.

Milton Hatoum, descendente de imigrantes do Oriente Médio e, portanto, ele próprio um pouco oriental, tem o mesmo estranho hábito do personagem de Tolstoi. Quando é entrevistado, nunca se manifesta com pressa. Pensa vários segundos antes de começar a resposta. Alonga as frases e principalmente as pausas. Gosta que tudo seja feito com a mesma calma. "As pessoas não dão muito tempo para o pensamento", diz ele, pacientemente, tentando não incorrer no mesmo erro.

Os livros de Hatoum, que vem se tornando o romancista favorito da crítica brasileira, nascem da mesma maneira. São pensados, escritos, reescritos, retrabalhados. Só vêm a público quando revistos uma dúzia de vezes ou mais. Por isso é que Hatoum publica pouco. Aos 54 anos, tem apenas três romances lançados. O primeiro (O Relato de um Certo Oriente é de 1990; o segundo, Dois Irmãos, de 2000; e o terceiro, Cinzas do Norte, de 2005). Mas, segundo ele, também é por isso que os trabalhos vêm recebendo uma boa aprovação. "Se tivesse lançado vários livros no mesmo período, dificilmente seriam obras razoáveis", afirma.

Dos três romances, dois se tornaram vencedores do Jabuti, o mais tradicional e importante prêmio da literatura nacional. Com Relato de um Certo Oriente, levou a honraria já em sua estréia. Cinzas do Norte, lançado no ano passado, também ganhou o primeiro posto. Não só de melhor romance como o de melhor livro de ficção do Brasil.

Curiosamente, o único livro que não ganhou o prêmio é disparado o maior sucesso de público do autor. Dois Irmãos já tem cerca de 40 mil exemplares vendidos, ganhou edição de bolso e está prestes a se transformar em minissérie da Rede Globo. Os direitos da obra já foram comprados pela emissora, conforme revelou o próprio autor em sua passagem por Curitiba nesta semana. Hatoum veio à cidade para participar do Paiol Literário, evento promovido pelo jornal Rascunho, especializado em literatura.

A paciência para fazer os livros é um dos pontos em comum que Hatoum mantém com seu maior guru literário, o francês Gustave Flaubert. Considerado um dos criadores do romance moderno, Flaubert passou a integrar o panteão de grandes escritores do século 19, tendo publicado poucos livros. "Os dois romances fundamentais dele são Madame Bovary e A Educação Sentimental", afirma Hatoum, que tem fascínio também pela única – e diminuta – coleção de contos do escritor.

Flaubert é o modelo para Hatoum por vários motivos. O escritor enuncia alguns: a elegância da frase, a preocupação com a forma, o interesse pelos temas humanos.

Ele não é um saudosista, não vive de recriar romances antigos, mas mantém mais proximidade com o modelo do século 19 do que a maioria dos seus contemporâneos. Até porque não tem grandes preocupações com experimentalismos literários.

Embora declare-se fã de vários inovadores – tanto na forma quanto na língua – como Faulkner e Guimarães Rosa, só para citar dois, o escritor diz que nunca sentiu necessidade de escrever como eles. "Não preciso de neologismos", diz, com simplicidade. Seu texto, pelo contrário, tem uma marca clássica, que não traz grandes sobressaltos para o leitor moderno.

Amazônia

Hatoum é nascido em Manaus. E, segundo ele próprio, quem vive no Amazonas não consegue deixar de perceber a influência da floresta. Para um escritor, isso pode trazer diversas conseqüências. "Uma delas é que quem convive com a floresta, acaba percebendo o verdadeiro tamanho do ser humano", diz. A Amazônia, assim, seria uma espécie de antídoto contra qualquer forma de arrogância ou de prepotência.

A floresta também perpassa a obra do escritor. Embora viva hoje em São Paulo, Hatoum conta que passou a infância e a juventude no Amazonas. "E prefiro descrever um lugar que conheço profundamente", revela. Por isso, suas histórias sempre estão pelo menos parcialmente ambientadas em Manaus. "Mas as histórias também têm um diálogo do Amazonas com outras partes do mundo. Às vezes com o Rio de Janeiro, às vezes com São Paulo ou com a Europa. E é sempre um diálogo tenso", conta.

Há quem diga que a presença da floresta pode ter facilitado o autor a conseguir interesse do público, principalmente fora do país – Hatoum, segundo suas próprias contas, já está traduzido em nove idiomas. Mas ele acredita que, embora alguém possa ter curiosidade por saber como é a vida na Região Norte do Brasil, dificilmente esse é o motivo central do interesse pelo que ele escreve. "Até porque eu não uso a floresta como um exotismo", comenta, lembrando que ele e suas tramas, no fim das contas, são urbanos.

Nobel

Com seus três livros, Hatoum vem se tornando uma espécie unanimidade entre os críticos e escritores brasileiros. Vários já o colocam como o principal romancista vivo do país – até mesmo na frente de nomes mais conhecidos, como Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro. O autor diz que se trata de gentileza e desconversa. Mas fala que a literatura brasileira vive um bom momento. Para ele, porém, o melhor da literatura brasileira está na safra que começa nos anos 30 e vai até a segunda metade do século 20, com autores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. "Acho que ninguém da minha geração escreve pensando em se comparar a eles", opina.

Entre os que considera bons autores vivos atualmente, inclui desde gente de mais nome, como João Ubaldo Ribeiro, até jovens talentos, como Daniel Galera; desde conterrâneos, como o amazonense Márcio Souza, até gente da outra extremidade do país, como Dalton Trevisan, Cristovão Tezza e Wilson Bueno, todos nascidos ou radicados no Paraná. Mas admite que a literatura produzida pelos atuais escritores tem menos peso do que a de seus antecessores. Principalmente, diz, porque a literatura perdeu espaço para outras formas de expressão, como a televisão e a internet. "O papel público do escritor diminuiu", afirma.

Quando perguntado para qual dos atuais escritores brasileiros ele daria o Nobel de Literatura, ele primeiro lembra que o prêmio deveria ter sido dado a Drummond. E, depois, de pensar algum tempo dá uma resposta. Ferreira Gullar seria um possível escolhido. Mas ele acha que outros latino-americanos, como Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes, também mereceriam e têm mais chances. "O Nobel também é um prêmio que envolve política", completa.

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