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Retrato da escritora Virginia Woolf, autora de uma das Cartas Extraordinárias | Miguel Nicolau Abib Neto/Especial para a Gazeta do Povo
Retrato da escritora Virginia Woolf, autora de uma das Cartas Extraordinárias| Foto: Miguel Nicolau Abib Neto/Especial para a Gazeta do Povo

Livro

Cartas Extraordinárias

Shaun Usher (org.). Tradução de Hildegard Feist. Companhia das Letras, 368 pg., R$ 99,90.

Tenho certeza de que vou enlouquecer de novo. Não podemos passar por mais uma daquelas crises terríveis. E, dessa vez, não vou sarar. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece a melhor coisa. (...) Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando sua vida, que, sem mim, você poderia trabalhar. E eu sei que vai. (...) Não posso continuar estragando sua vida. Não creio que tenham existido duas pessoas mais felizes do que nós.

Virginia Woolf, escritora, para o marido, Leonard.

Talvez você não lembre, mas houve um tempo em que as pessoas usavam folhas de papel para dizer o que sentiam, pensavam e viviam. Faziam isso pensando numa leitora específica (ou num leitor) e chamavam isso de "correspondência".

Cartas e cartões são raridades hoje. E-mail, Whatsapp e o que mais você conseguir colocar no celular ou no computador tornaram absurdamente simples o envio de uma mensagem como "Sinto sua falta" ou "Não se esqueça de comprar cerejas".

Mas tornaram também muito, muito banal.

Foi com o espírito de um colecionador de objetos valiosos que Shaun Usher criou uma página na internet, Letters of Note. A intenção dele era e ainda é publicar cartas importantes – e telegramas, bilhetes, postais e o que mais surgisse, desde que fosse algo palpável. Poderia ser, por exemplo, uma tábua egípcia do século 14.

Usher fez uma seleção do material reunido no site com a ajuda de gente comum e de pesquisadores e criou um livrão, Cartas Extraordinárias, com fac-símiles, fotos e traduções das correspondências. O material, bastante eclético, vem com pequenos textos explicando por que cada uma delas tem valor.

Pense na importância da carta escrita pelo capitão Robert Falcon Scott (1868-1912) para a mulher, Kathleen, durante a viagem de volta do Polo Sul, a 70 graus abaixo de zero, dentro de uma tenda com os poucos confortos disponíveis no início do século 20.

"Você sabe que amei você, que estou sempre pensando em você e, ah, também precisa saber que o pior de tudo isso é pensar que nunca mais vou ver você – temos de encarar o inevitável", escreveu o capitão. A carta foi encontrada com o corpo de Scott.

Correspondências amorosas rendem momentos intensos no livro. A escritora Virginia Woolf (1882-1941), autora de Mrs. Dalloway, sofria de depressão e deixou um bilhete para o marido, Leonard (leia trecho nesta página), pouco antes de se suicidar. "Não posso continuar estragando sua vida", escreveu.

Uma das mais dramáticas foi escrita em 1586, por uma viúva: "Não posso viver sem ti. Quero ir te encontrar. Por favor, leva-me para perto de ti. Nunca na vida eu poderia esquecer o que sinto por ti, e minha dor é infinita. A quem vou dar meu coração agora?".

É melancólico pensar que uma mensagem de celular não parece capaz de durar 428 anos, ainda que fosse forte como a carta para o senhor Eung-tae Lee, um homem comum, encontrada no túmulo dele na cidade de Andong, na Coreia do Sul, em 1998. A viúva não assinou a carta.

Camicase

"Sou uma pessoa feliz que pilotou um grande avião de bombardeio e acabou com o inimigo. Por favor, sejam imbatíveis como seu pai e vinguem minha morte", escreveu o piloto camicase Masanobu Kuno para os filhos, Masanori e Kiyoko, em 23 maio de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial.

Temas

"Todas as mulheres gostam de barba", diz menina para Lincoln

No livro Cartas Extraordinárias, há exemplos de correspondências incríveis que envolvem ciência e política.

A carta que o cientista Francis Crick escreveu para o filho, Michael, de 12 anos, explicando a ele que havia feito "uma descoberta importantíssima" – a da "linda" estrutura do DNA, ou, como ele escreve para o menino, do "ácido desoxirribonucleico (leia devagar)" –, em 19 de março de 1953, se tornou a mais cara da história. Ela foi leiloada por US$ 5,3 milhões (R$ 14 milhões). Uma das mais engraçadas partiu de uma menina de 11 anos, Grace Bedell, para o republicano Abraham Lincoln, que concorria à presidência dos EUA. "Eu tenho quatro irmãos e alguns deles vão votar no senhor e se o senhor deixar crescer a barba eu vou tentar convencer os outros a votar no senhor o senhor ficaria muito melhor porque tem o rosto muito magro. Todas as mulheres gostam de barba e haveriam de apoquentar os maridos para votar no senhor e o senhor seria presidente."

Cartas

A frase "Venha, meu amor" ("Herzens-schatzi komm", em alemão), escrita diversas vezes por Emma Hauck, paciente do hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, para o marido, Mark. A carta de 1909 nunca foi enviada e ficou arquivada no hospital. Emma sofria do que hoje seria diagnosticado como esquizofrenia. A repetição da frase acabou criando um padrão, transformando a carta numa espécie de obra de arte.

"Quem escreveu a propaganda é, sem dúvida, a criatura mais ignorante do planeta; sem dúvida é um idiota em 33º grau, descendente de uma longa linhagem de idiotas que remonta ao Elo Perdido", escreveu Mark Twain para um vendedor do "Elixir da Vida", um remédio supostamente mágico. Ele perdeu a mulher e filhos para doenças que o picareta prometia curar. A carta é de 1905.

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